O LIVRO DOS CARREGADORES - 2a parte >> Zoraya Cesar
Era um pesquisador, mais afeito a combater o fungo dos livros e a decifrar manuscritos que a enfrentar demônios. Mas era, acima de tudo, um Carregador. Provido da coragem própria dos de sua profissão. E, mesmo estando derrotado, ainda poderia dar uma chance de o Livro chegar a seu destino.
- Vamos, vamos, seja razoável. Me entrega logo esse pacote. Não vê que fracassou? Não quero ter de quebrar seus braços. - A mulher fez um muxoxo irônico, demonstrando cabalmente que, ao contrário do que dizia, não teria pejo em perpetrar algum tipo de violência.
O Carregador, por entre a mente enevoada, a boca entreabrindo-se, um filete de baba arroxeada escorrendo, olhou para ela, balbuciando fracamente palavras indistinguíveis, enquanto tamborilava o embrulho com seus dedos frágeis. A mulher piscou várias vezes, divertindo-se.
- Como? Tá querendo me dizer alguma coisa, querido? Mas não consegue, eu sei, eu sei. Tadinho. O veneno não deixa. - O demônio poderia ter arrancado o pacote do abraço do Carregador e partido. Teria sido melhor se o fizesse. Mas como resistir à tentação de ver a Morte carregar um Carregador? Sua risada gorda encheu o ar de um cheiro pútrido e fez caírem, mortas, diversas folhas e insetos da árvore sob a qual estavam sentados. A Morte… gargalhava… carregando... um Carregador… Sua pança sacudia-se, feliz, ao som da própria piada. Não. Havia de esperar mais um pouco. Assim sua satisfação seria completa: assassinara um Carregador, roubara sua carga e ainda assistiria à sua morte.
Seus olhos miúdos e porcinos encararam a vítima com curiosidade. Jamais encontrara um Carregador. O que não era de se estranhar.
A seita dos Carregadores surgira durante o Renascimento e sempre se caracterizara pela discrição de seus membros, homens e mulheres dedicados a procurar, pesquisar e destrinchar escritos secretos, perdidos ou desconhecidos das Artes Ocultas. Eram assim chamados porque não permitiam que ninguém além deles mesmos transportassem os objetos, artefatos, livros que descobriam… A demônia não sabia exatamente o que continha o embrulho – parecia um livro - que o Carregador morreria para proteger, mas devia ser muito importante, para seus chefes terem expedido tantos demônios à sua procura. A mulher não cabia em si. Talvez ganhasse uma promoção. O que será que ele tentava falar? Provavelmente delirava.
- Você sabe, querido, o que está te matando? Nosso Mestre dos Venenos conseguiu transformar o Elixir Vital do chato (mas talentoso, é verdade) do Saint-Germain em um Veneno da Morte Violeta. Manda quem o toma para o 7º raio... que o parta… - A mulher dobrou-se de rir com sua brincadeira infame. Estava tão inspirada! O som demoníaco e desagradável de sua risada explodiu a lâmpada de um poste afastado. A mulher voltou-se para o Carregador agonizante.
Sua pele tomara tons iridescentes de azul e violeta, as unhas rachavam, caindo aos pedaços e ele... ressequia, ressequia a olhos vistos, velozmente! A mulher deleitava-se com aquele espetáculo macabro.
- Nunca tinha visto o filtro agir assim, ao vivo e em cores. Ou melhor, ao morto e bicolor, querido, roxo combina com você! HAHAHAHA, estou terrível hoje, nunca fiz piadas tão boas. - E sua casquinada funesta matou um pássaro em pleno voo, que caiu a seus pés. A mulher pegou o corpo caído e comeu-o, gulosamente.
O Carregador agora estertorava baixinho, qual um peixe fora d’água, mas continuava a murmurar e agora acariciava com os dedos o pacote que abraçava com suas últimas forças.
Subitamente, uma brisa suave e fresca trouxe um odor de lavanda e alecrim. A mulher sentiu ânsias - como todos os de sua espécie, tinha aversão a perfumes de alta vibração energética. Perscrutou os olhos embaciados do Carregador e teve certeza que o fim estava a dois passos. De repente, resolveu que não esperaria mais. A Dama dos Portais tinha, por vezes, um estranho senso de humor negro e, ocasionalmente, aproveitava a viagem para levar também os que estavam nas proximidades de seu objetivo. A mulher demônio não tinha a mínima intenção de fazer parte dessa estatística.
- Bem, querido, é aqui que nos despedimos. Foi divertido nosso encontro. Eu poderia te desejar boa viagem, mas sou um demônio, quero mais que você se dane hahahaha…
Embevecida com seu feito e preocupada em sair dali antes de a Dama dos Portais chegar, agarrou o embrulho e partiu, sem olhar para trás. E sem notar o leve sorriso do Carregador, nem o brilho de astúcia que assomou em seus olhos fenecentes. Não viu, também, o tênue rastro deixado pelo Livro, enquanto caminhava. Ela não sabia, mas o Carregador fora mais esperto.
A Dama dos Portais chegou, acompanhada por um homem, que sentou ao lado do corpo inanimado do Carregador, agora, mais que nunca, parecendo uma cigarra estourada há muito, muito tempo.
3a e última parte no dia 19 de fevereiro.
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Pessoal, obrigada pelos comentários à 1ª parte de O Livro dos Carregadores. Respondi a todos, na maior alegria. Tá no link abaixo.
Comentários
Queremos Conto Completo Já!
para causar exatamente o efeito sensorial/visual que você pretende.
que venha o final, com a grandiosidade simples que você tão bem utiliza.
🙂😛
Aninha - Reclama com o Lucrécio Lucas, nao comigo! Eu nao tenho culpa!
Branco - vc me deixa sem palavras. Isso é que não vale!
Nádia - olha quem fala! a Rainha dos Episódios Tensos. Eu tb estou curiosa pra saber dO Livro. Mas acho que é melhor nao saber. Queima de arquivo...
Maria - heheeh, isso isso isso
A todos, obrigada!
Eu já não durmo, assombrado pelos seus demônios e pelas feiticeiras da Nádia.
Não me bastava a covid!
Alfonsina - oba! é a verdadeira glória qd alguém ri de nossos textos pq agradaram. Ganhei meu dia total!
Marcinha - ai ai ai, vc é a Gentil! obrigada! demais!