ZANZANDO PELA PRAIA DESERTA >> Sergio Geia
Está só. À
medida que ele anda, deixa marcas no caminho. O rastro não é linear, é sinuoso.
As pegadas às vezes seguem na direção do mar, como se ele fosse entrar, molhar
os pés, dar um mergulho, depois voltam em sentido contrário, mais fundas,
disformes, atrapalhadas, como se a tentativa agora fosse fugir. De vez em
quando ele para, olha pra trás, analisa atentamente a sinuosidade das pegadas
que o seguem, abaixa, toca com as mãos as mais próximas — a delicadeza é tanta
que tem a sensação de tocar um corpo de mulher. Parece gozar da textura, da
maciez, experimenta a profundidade, parece sentir as curvas. Em seguida, recolhe
a mão do buraco, bate uma palma na outra pra se livrar da areia, esfrega,
depois endireita-se, levanta-se, olha de novo pra frente, e uma sensação de
ausência lhe bate quando não vê algumas marcas que ficaram pra trás. Dá uma
olhada no mar, nas ondas miúdas que quebram.
Do lado
oposto vem um homem com um pedaço de pau nas mãos; é seguido por cachorros. Quatro,
ele conta. Parecem crianças numa espécie de Playcenter,
tamanha a felicidade. Eles correm,
entram no mar, pulam um sobre o outro, depois seguem para a areia, brincam mais
um pouco, até alcançarem a calçada; os quatro, sempre juntos, sempre unidos. Até
que um deles se desgarra, o de pelos pretos, sai em carreira atrás de uma
gaivota, como se pudesse apanhá-la. A ave parece gostar da brincadeira, dá
rasantes, o cão se anima com a possibilidade de captura; ela beija o mar, depois
sobe, sobe alto, mas ainda assim o cão não desiste. Vão brincando por longos
dois ou três minutos, um atrás do outro. Depois o animal se cansa, dá-se por
vencido, volta devagar para o seu grupo. Ele a tudo observa e gosta do que vê,
especialmente a alegria da cachorrada, e sente, ainda que sutilmente, um pequeno
músculo facial saindo da inércia, mexendo-se levemente na vã tentativa de
fazê-lo sorrir.
Cruza com o
homem dos cães que parece caminhar encharcado de liberdade, e sente uma ponta
de inveja. Inveja o despojamento, apenas uma bermuda de tactel, um colar de
rodelas em feltro, pulseiras de macramê, um pau na mão.
“Boa tarde!”,
ele diz.
“Boa tarde!”, o outro responde.
Segue agora
mais próximo à borda do mar. O restinho de onda que o encontra é gelado, e
desperta uma sensação de refazimento. Ele sabe que o mar o conserta. Ele sabe
que precisa do mar. São ondas que vêm. Ondas que vão. Olha o horizonte e pensa:
“Quantos pés já não passaram aqui? Quantos pés já não deixaram suas marcas na
areia, e sentiram a água gelada? Quantos olhos não avistaram o horizonte que
ele agora contempla?” Pés e olhos que talvez, muitos deles, não existam mais, comidos
que foram pelo fim implacável. Ele pode ser mais um. Amanhã serão outros. Mas o
mar, ah, o mar será o mesmo e ficará ali por décadas, séculos, milênios. O
pensamento é estranho.
Sente
vontade de entrar, mas está frio. O vento é cortante. Deixa os chinelos que levava
nas mãos no chão, prepara uma espécie de assento, larga-se sobre o banquinho de
borracha, a vista longe num barquinho de pescador.
Não tem
noção de como as coisas acontecem, mas uma certeza sólida desaba sobre ele agora:
sabia desde o início que um dia terminaria assim, zanzando pela praia deserta,
caminhando só numa tarde fria. Sempre soube. Tal como um déjà-vu. Uma escolha pensada. A solidão sempre lhe fora uma boa
companheira. E a escolha pela solidão sempre fora consciente.
Tira a blusa
démodé de lã escura, velha, a camisa surrada de listras verticais, a bermuda bege
de sarja. Amarra com firmeza a sunga preta, e sem pensar, sai andando, devagar,
na direção do mar. As águas geladas o recebem, e ele, a princípio, recusa.
Pensa em desistir, o frio é absurdo. Mas, à medida que vai entrando no freezer,
vai ficando, e à medida que vai ficando, o corpo vai gostando. Já com água no
umbigo, olha para o céu e agradece mais uma oportunidade de beber do mar.
Fica uma
meia hora, depois sai e para próximo às roupas que deixara na areia. Treme.
Ainda molhado, mas sem paciência de esperar a secagem natural, veste-se com a
camisa de botão, a blusa. Põe a bermuda em cima da sunga molhada e dá uma
olhada em tudo, como se fosse a última vez. Depois sobe até a calçada e
desaparece entre os coqueirais.
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