QUANDO OS VIVOS SE AUSENTAM DA VIDA >> Carla Dias >>
Reconhecer-se em Para fugir dos vivos é o que nos permite a autora, Eltânia André. Isso porque as personagens do livro, especialmente o escritor avesso ao convívio social, leva o leitor a território possível. Não é difícil se imaginar no lugar dele, enquanto se lê sua história. Não é difícil se imaginar no lugar de qualquer um deles. Essa facilidade conduz o leitor a cenários complexos, nublados pela simplicidade de uma vida privada de privilégios.
Dividido em duas partes, o Livro 1 é narrado pelo escritor, que saiu de casa aos dezessete anos e tem de voltar a sua cidade, após se especializar em evitá-la. Durante a viagem, o adulto revisita a infância, mergulhando em suas tragédias particulares. Em Livro do Miguel, o ponto de vista do irmão desnivela a realidade do outro, apontando o quanto a percepção escolhe o caminho a ser percorrido, ao ter de se lidar com a aridez de uma vida desviada do afeto.
“Aprendi muito cedo que a vida é solidão.”
Entregue à solidão, reconhecida na infância, o menino se descobre capaz de se refugiar na imaginação que, mais tarde, garante a ele uma vida dedicada às palavras, ao intelecto. O pai, Fonseca, carpinteiro em um cemitério que, não raro ajudava com o serviço de coveiro, lidava melhor com os mortos do que com os vivos, principalmente os filhos. Às vezes, castigava os moleques, ainda que dele ansiassem pelo abraço. “Essas mãos, grosseiras, desajeitadas, não serviam à delicadeza de um gesto de carinho, nunca ao afago paterno”.
Apesar da falta de afeto do pai, não era ele quem agoniava mais o menino. “Ela”, como se referia à mãe, era quem ampliava o horizonte de agonias dele. Ele reconhecia a mulher como um ser dedicado ao tormento causado pela tristeza, incapaz de inspirar amor e alegria. “Ela não era feliz, então ninguém poderia ser.” Ismália Maria, a Maria Comprida, tornou-se o avesso das buscas do menino. Ao sair de casa, aos poucos, mas efetivamente, ele vai se desconectando dela. Ao menos, é assim que ele pensa, até ser obrigado a voltar ao convívio materno e ser tomado pelas lembranças.
Durante o Livro 1, o leitor trafega pelas descobertas do menino, as nuances de seu relacionamento estéril com os pais, a distância estabelecida com o irmão. Sair de casa foi como sair de cena daquela vida que o fazia encarar abandonos, o tempo todo. Foi tentar se encontrar em algum lugar que o permitisse exercer sua solidão e sua vaidade, longe do olhar desviado, porém sempre contestador e cruel da mãe, quem se torna ainda mais distante com a morte do marido.
"Um novo medo; de ficar a sós com Ela, sem o pai para, pelo menos, fazer sombra entre nós."
Ao mudar o narrador, em o Livro do Miguel a autora cria conflito com a primeira narrativa. Tudo no qual o leitor mergulhou, por meio do ponto de vista do escritor, torna-se frágil quando ele se depara com o ponto de vista daquele que ficou, conviveu com a mãe, construiu seu próprio exílio em um casamento adquirido, de acordo com o que deveria ser, não o desejado. E o desprezo pelas conquistas do irmão, o que partiu, mostra como ficar avariou o espírito do que ficou.
"Eu sei que o meu irmão já ganhou uns prêmios por aí, de que vale isso? Ele aparece nesses programas de cultura, dando entrevista. Esnobe e vaidoso."
Porém, a autora não desacredita um ou outro, e sim cria espaço para o leitor reconhecer que, talvez, haja uma terceira, quarta, quinta versão dos fatos. Principalmente ao considerar o que ambos pensam sobre a mãe e o relacionamento do outro com ela.
No romance Para fugir dos vivos, a autora leva o leitor a uma autoanálise, uma viagem interior por meio das solidões desses personagens. E, durante essa jornada, o próprio leitor se vê em conflito, ao se deparar com as percepções daqueles meninos, estampadas nas revelações dos adultos que se tornaram.
PARA FUGIR DOS VIVOS
Eltânia André
Editora Patuá
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