MEMÓRIA >> Carla Dias >>
Hoje é hoje. Que outro dia seria? Não importam as manchetes, as casas de alvenaria, os cubículos e seus códigos postais. Hora de bater cartão já passou, assim como o momento de reescrever histórias falidas.
Recomeços são para histórias sem ponto final.
Mas hoje chega com esse gosto de saudade voluntariosa.
Treinou tanto, dedicou-se muito, foi além da conta para alcançar esquecimento. Ainda assim, hoje é hoje. Que outro dia seria? Daí que toda lógica que atribuiu à própria vida, aquela que vem conseguindo manter elegantemente, desmancha-se diante de uma lembrança acontecida em outro dia, que não hoje. Foi há muito tempo, mas parece que esse tempo é agora.
Só que hoje traz essa coisa de calendário, de celebrar isso ou aquilo, esse ou aquele. Por que diabos nasceu com essa memória seletiva, que pouco se importa com datas significativas para o coletivo, com as vedetes de calendários?
Lembra-se dos pormenores, aqueles detalhes que não se encaixam nos grandes acontecimentos que influenciam a muitos, ao mundo. Nos quais, talvez, ninguém mais tenha prestado atenção.
7 de agosto de 1977
A forma como seus avós se abraçaram, após saberem do falecimento da Lurdes, a cadelinha que os acompanhou por mais de década. Foi abraço de quem se ampara no desamparo do outro e, de uma forma muito intrigante, encontra ali, naquela tristeza profunda, um bálsamo, a esperança de que tamanha dor irá abrandar.
9 de janeiro de 1985
A forma como seus avós se abraçaram, que lembrou muito a de anos atrás, só que com desamparo e desespero amplificados. Foi o dia em que o filho deles faleceu. Seu pai.
11 de março de 1990
A forma como um poema remexeu seu dentro como ninguém e nada fizera antes. Durante dias, não saiu de casa, não falou com amigos, não aconteceu em qualquer quesito. O silêncio foi profundo, a caminhada, pelos cômodos. Encantou-se pelo esvoaçar da cortina do quarto. Chorou, gargalhou, aquietou-se. Transcendeu.
22 de abril de 1992
A mão pequena e fria, de pele macia, encontra abrigo na sua. Espanta-se, mas consegue conter o espasmo provocado pelo susto e render-se ao deslumbre de segurá-la pela mão. O olhar dela disse amabilidades e afeto. O encontro durou a mudança do semáforo. A mãe da menina, em puro desespero, arrancou-a daquele segurar a mão. Deu bronca na menina, que começou a chorar miúdo, magoada por ter visto no segurar mão desconhecida um gesto natural.
Por que não se lembra somente dos dias que importam a muitos?
2 de julho de 1994
A mão lhe tocando o rosto como prefácio de desfecho desejado durante meses. A sensação arrebatadora de que o desfecho-beijo foi um milhão de vezes mais significativo do que aquele do roteiro imaginado.
15 de fevereiro de 2000
Os dedos do amigo a se enroscarem nos cabelos da namorada. Ela e seus cabelos negros e encaracolados. Ele e sua pele pálida. Era como se tal gesto de carinho desenhasse futuro nos cabelos dela. Sentiu-se feliz por eles. Sentiu-se feliz por saber que, nos minutos seguintes, o amigo se sentiria ainda mais feliz, porque a amiga lhe confidenciara que o pediria em casamento. Ele aceitou sorrindo e chorando ao mesmo tempo.
28 de setembro de 2008
Finalmente, cantou sua música preferida, assistindo ao show de sua banda preferida.
Poderia falar sobre muitas datas que nada representam a qualquer outra pessoa. Dedicou-se tanto, fez de um tudo para regrar essa sua memória. Pensou que tivesse conseguido. Mas ela insiste em trazer à tona um calendário de afetos e desapontamentos, de conquistas e perdas. Um emaranhado de percepções confidenciais, confiscadas de olhares atentos ao que vem depois do óbvio.
Hoje é hoje. Que outro dia seria?
Anota compromissos em sua agenda, discute futuros projetos, ocupa seu tempo. Ainda tenta educar sua memória, mas acontece que a tal é de rebeldia escancarada. Entre uma anotação e outra em calendário do dia...
20 de julho de 2012
Então... A lua...
Imagem © Caspar David Friedrich
carladias.com
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