O PADRE E O CARTEIRO >> Sergio Geia
Escolho uma mesa que fica encostada na
parede, a última na verdade, lugar que me dá uma boa visão do lugar. Peço pra
mocinha o de sempre: pão com manteiga na chapa; café expresso com leite,
pequeno; um suco de laranja coado e com gelo.
É mais uma manhã comum do meu dia. Já
tinha corrido na Santa Teresinha, agora tomo café, depois uma ducha, para enfim
trabalhar. Mas sinto que minha curiosidade de cronista está aguçada e, enquanto
espero o café, me ponho de butuca atento ao ambiente, às pessoas, tudo, à cata
de matéria-prima.
Normalmente, amigo, faço isso
naturalmente, como respirar. Quando dou por mim, estou lá, um abelhudo concentrado
no sujeito lendo jornal, nas meninas conversando, no casal tomando café, até
num papo de doença entabulado com alegria por dois velhinhos. Há muito material
pulsante esperando pra virar crônica. A vida é a minha matéria-prima.
Mas hoje sinto que estou com os
sentidos mais aguçados do que o normal. Infelizmente, porém, vendo o tempo
passar, já tomando suco, vejo que não encontro nada interessante no simples
caminhar de uma padaria numa fria manhã: pessoas chegando pra comprar pão;
outras, como eu, pra tomar café; as mesinhas sendo preenchidas por
trabalhadores do entorno, o balcão com aqueles que preferem algo mais informal,
café preto no copo americano, a leitura do jornal.
Como o carteiro. Deve ser íntimo da
turma, pois vai abraçando todo mundo, falando em voz alta como se estivesse em
sua casa. Noto que ele deixa a correspondência no balcão, senta, pega o jornal
e pede um pingado e pão com ovo. Depois olha pro seu vizinho – um mauricinho, a
barba por fazer, camisa comprida por fora da calça – e aponta o jornal, caçoando
de alguma coisa. Deve ser corintiano, penso, mostrando a classificação e
tirando sarro do Palmeiras.
Chega o padre. Eu o conheço da Santa
Teresinha. “Bom dia!”. A voz se impõe, muita gente olha. Ele só olha pra mocinha
e diz: “O mesmo de sempre”. O padre toma café todos os dias ali, as meninas já conhecem
as suas preferências. Uma figura simpática, alegre, bem quista por todos. Outro
dia o encontrei num restaurante, na Professor Moreira. Acho que almoça sempre
lá. Acho uma ironia a vida de um padre. Cercado por uma comunidade inteira, por
bajuladores dos oito aos oitenta e oito (principalmente), e uma vida tão solitária.
Acho que padre sofre de solidão. Acho.
Levanto para pagar a conta e encaro uma
filinha. Olho de lado, e vejo agora o padre e o carteiro conversando. Amigos
íntimos. Na ducha, faço um pequeno resumo. Concluo que nada de interessante
aconteceu. No entanto, ouço uma voz dizer que o charme de uma crônica é exatamente
isso, escrever sobre as banalidades da vida, o cotidiano simples das pessoas,
coisas que passam despercebidas pra muita gente. Um olhar na insignificância. Depois
escuto Prata, o pai, falar: “fazer crônica é transformar banalidade em arte”. Sim,
é isso. Como eu poderia ter esquecido? Desligo o chuveiro com a nítida sensação
de que a crônica já está pronta.
Ilustração: Romeo y Julieta ante el padre Lorenzo – Karl Ludwig Friedrich Becker
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