O CAMINHO >> Sergio Geia
A imagem é a de uma lata de salsicha.
Pode ser de ervilha. Milho. Grão de bico. Mas ele não consegue encontrar a
ideia de prisão de que tanto falam, de alguém escravo de suas próprias peles;
embutido. Foi criando, eles dizem. Achando que era assim ou assado. De repente,
estava escondido debaixo de uma fileira de edredons.
Tudo aconteceu de forma rápida e
natural, eles prosseguem. Imperceptível também. Nada forçado, empurrado. Mas ele
ainda não percebe tão claramente. Tudo está escondido num nevoeiro denso. Se
bem que tem o tal do feeling. Ele tem. Na verdade, no fundo, mas bem lá no
fundo mesmo, ele sabe. Sempre achou que estava fazendo a coisa certa, que percorria
uma estrada segura. O que não podia imaginar era que essa estrada aparentemente
segura e charmosa pudesse ser uma armadilha. A pele foi cortada. A natureza,
transmudada. A alma, mutilada.
Elas gritam. Até então, viviam lá,
tranquilas, pescando bacalhau na Noruega. Tipo sujeira debaixo do tapete. A
ficha cai e ele resolve olhar com mais cuidado, levanta o tapete e encontra uma
pasta enegrecida. Tem medo. Muito medo. Abaixa o tapete. Prefere ignorar, seguir
adiante. Mas não dá. O adiante dura nada, e quando vê, está lá novamente. Agora,
com coragem, encarando o negrume.
Ficam amigos e passam a trocar
figurinhas. Com o tempo, descobre que não era nada daquilo. Um bebê. A
inocência pura. O pensamento o fortalece. Estranho esse mundo que transforma maus
em bons, complicado em simples, morte em vida. O tempo. Descobre que de todos,
todos os seus amigos, até os mais íntimos, ninguém, mas ninguém tem o abraço do
conforto mais apertado e curativo que o tempo.
Mas esse mesmo amigo revela que de
candura o bebê não tem nada. Se estava pensando que era fácil, danou-se. Nada é
fácil nessa vida. Descobre coisas novas, fissuras que precisam ser cuidadas,
vazios que precisam ser preenchidos, nevoeiros que precisam ser dissipados.
Descobre que precisa reencontrar sua natureza essencial para ser quem
verdadeiramente é. Descobre que precisa encarar seus monstros intocáveis para
tornar-se alguém de verdade, um ser de luz. Uno.
Ele se espanta com as luzes da cidade.
Depois de mais uma boa e exaustiva caminhada, enfim um lugar para comer, fazer
amigos e descansar. Sabe que é a primeira de muitas paradas. Sabe que o caminho
pode ser ao mesmo tempo atraente e enriquecedor, perigoso e fatal. Mas tem a
nítida sensação de que será bom, e que vai chegar são e salvo ao seu destino.
Como o alquimista, até tem a intuição de que sabe onde seu destino vai dar. No
entanto, não há atalhos. Se quer ser alguém de verdade e encontrar a sua
essência, precisa correr riscos, precisa do caminho.
Ilustração: Renoir
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