A MENINA DO PÔSTER >> Carla Dias >>
Nasceu meio torta, esquisita mesmo, como gostavam de dizer as meninas descoladas da rua onde morava, as mesmas da escola que frequentava. Beijar pôster de artista, antes de dormir, e bater papo com eles sobre seus sonhos para quando se tornasse adulta, renderam muitas zombarias, algumas capazes de magoar naquele tom de poesia pós-aquisição de tristeza porreta e completamente indesejada.
As meninas ficaram sabendo do seu segredo, porque, sem querer, o irmão comentou com elas. Ele é popular, adora impressionar as meninas, então embarcou na curiosidade delas sobre a irmã. Foi o que bastou para que elas tivessem assunto para semanas.
Tirando essa zombaria sem fim, a menina acredita que pode falar com quem quiser, ou com o quê. Ela conversa com o zelador e com Soraia, do apartamento 32, que vive no prédio desde muito antes que a menina e adora incenso. O Ludovico, moleque danado do apartamento 34, disse que ela é Hippie Chic. A menina não sabe o que é isso, mas gosta do cheiro dos incensos.
Outro dia, teve uma longa – e exaustiva – conversa com seu reflexo no espelho do elevador, que quebrou e o zelador, Seu Genival, demorou a resolver a questão. Ela bate uma caixa com os santos, às vezes até revigora a rebeldia, e convoca alguns demônios para o disse-que-disse. Tem pudor nenhum essa menina, quando se trata de conversa. E o beijo antes de dormir? No pôster? Ah, vá... Vocês nunca beijaram nada parecido? Capa de disco modelo Long Play, foto na revista, anúncio de iPhone de última geração? iPhone de última geração?
Hoje a menina não está para conversa. Andando de cabeça baixa, quando não de cara amarrada, como se tivesse letreiro na testa: “não fale comigo!”. O zelador estranhou por demais, quando ela passou por ele sem lhe oferecer o rotineiro – e sempre agradável – “bom dia”. Seu Genival sentiu uma dorzinha no peito, acostumado que está a ser agraciado com a graça da menina.
Ela encontra Soraia voltando do passeio com o Hendrix, seu Rottweiler preferido. Os outros três ficam no sítio dela, em Jaboticabal: Joplin, Morrison e Cobain. A menina levanta o olhar e cala o sorriso da mulher com a tristeza exposta neles, que lhe pergunta se está tudo bem. A menina se ajoelha no chão, faz um carinho no Hendrix, e diz que ainda bem que a Soraia tem um apartamento enorme, onde ele cabe folgadamente. Depois, vai embora, sem responder a pergunta de Soraia.
Sim, ela está extremamente chateada nesse dia. Conversou quase uma hora com o pôster do seu artista preferido, tentando entender o motivo de tal descabimento. Ele não tinha nada a dizer, e ela entende. Esse é um assunto delicado. Daí sua mãe gritou “café na mesa!” e, quase que ao mesmo tempo, seu estômago roncou. Ela beijou o pôster, desejando um ótimo dia ao artista e foi tomar café da manhã. Comeu tudo, como a mãe ordenou, e mais três ou sete bolachas. Depois, foi para a escola, o coração apertado.
O que deixou a menina cabisbaixa, intrigada, com vontade de nunca mais pentear os cabelos, em sinal de protesto, foi o jeito com o qual as meninas-zombeteiras trataram uma nova aluna da classe, na semana anterior. As cascas-grossas disseram que se a menina pronunciasse uma palavrinha que fosse elas treinariam tiro ao alvo com elástico, e a menina seria o alvo. Além disso, teve a outra coisa...
A aluna nova não disse palavrinha que fosse. Mesmo com a menina puxando conversa, animada, doida para conhecer melhor a colega de classe. Nadinha de nada. Assim, a menina teve outra longa – e exaustiva – conversa consigo, mas desta vez não foi seu reflexo o ouvinte, e sim a nova vítima das meninas-zombeteiras.
No final da aula, após outro monólogo da menina, a aluna nova se aproximou bem dela e disse - meio que assoprando as palavras, evitando mover os lábios, que estava morrendo de medo de a descobrirem e ela se tornar alvo de elástico: “você beija pôster? Não tem nojo, não? Eita! Guria porca...”.
A menina nova ficou uma semana calada. Quando foi liberada pelas meninas-zombeteiras, ela se mostrou uma ótima conversadeira. Porém, ela se uniu as suas ex-algozes, expressando a sua opinião sobre a outra. Foi assim que, no dia anterior, as meninas-zombeteiras adotaram mais um adjetivo para infernizá-la: porca. Agora, ela era a menina porca do pôster.
Ela não entende a facilidade com a qual as pessoas definem as outras. Sem contar que ela gosta por demais da porquinha que a Dona Ludmila, do apartamento 12, adotou. Até laço cor-de-rosa na Severina a Dona Ludmila colocou. Ficou linda, linda.
A menina sabe que isso vai passar, e que não gosta de perder tempo sem perguntar, questionar, querer saber mais e mais sobre o tudo. A sua curiosidade é fã da gentileza e do respeito, talvez por isso os adultos gostem tanto de conversar com ela. Nem sempre funciona com as meninas de sua idade, mas ela entende que o ser humano não pode ser bom em tudo. Ela é boa com as conversas... Até o Ludovico disse isso, fazendo careta, mas disse.
Ontem ela levou uma rasteira desse sentimento novo: desapontamento. Ainda assim, tem muito a contar, debater, desfiar. Por isso, ela planeja, na volta da escola, uma parada de boa duração no balcão do Seu Genival. Talvez toque a campainha da Soraia - que fez com que ela prometesse nunca mais chamá-la de Senhora ou Dona - para comer a famosa gelatina de morango e fazer carinho no Hendrix. Quem sabe ela não faz uma visita a Dona Ludmila - que a fez prometer não chamá-la de Lud, como as suas irmãs a chamam - e leva a Severina para um passeio pelo corredor?
No meio do caminho, antes mesmo de chegar à escola, a menina sorri. No portão, agrupam-se as meninas-zombeteiras, mas ela se sente tranquila, e acena para elas, antes de atravessar o portão. Elas torcem o nariz, uma até faz o sinal da cruz.
Hoje ela vai ter muito que conversar com o pôster. E antes do beijo de boa noite, ela vai escutar aquela música, sabe? Aquela...
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