UM DIA DEPOIS DO OUTRO DEPOIS DO OUTRO >> Zoraya Cesar
De segunda a sábado, chovesse ou fizesse sol, com ou sem greve dos transportes públicos, Jocineide não faltava ao trabalho. Limpava, passaava, lavava e arrumava para seis patroas diferentes, uma para cada dia da semana. Patroa não, corrigia ela, cliente.
Jocineide tinha classe. Falava em voz baixa, era discreta, vestia-se, em qualquer ocasião, como quem iria a um compromisso social importante. Os cabelos jamais estavam em desalinho e só andava cheirosa. Era um capricho só com a própria aparência, com as casas nas quais trabalhava e com tudo em que pusesse as mãos – cujas unhas estavam sempre pintadas e bem cuidadas.
As clientes pagavam-na regiamente, pois preferiam a morte a perder uma diarista de confiança, competente, e que jamais as deixava na mão. Guardar algum dinheiro, ela até guardava, a duras penas, mas nunca sobrava o suficiente para arrumar seu barraco e sua vida do jeito que tanto queria.
Jocineide nasceu princesa num ambiente plebeu. A começar pelo marido, que era porteiro de um condomínio de luxo, mas perdera o emprego dois anos depois de casados, por dormir em serviço e chegar bêbado ao trabalho. Chegar bêbado em qualquer lugar, aliás, era a rotina dele. Chegar bêbado em casa, arrancar o dinheiro que ela ganhara, gastar com bebida, cartas, mulheres, não necessariamente nessa ordem,.
No lugar onde viviam a vida já era dura o suficiente com marido, bêbado ou não. Sem um homem – por pior que fosse – para dar um respeito, era impossível manter a distância dos inconvenientes. Jocineide não via muita saída, até porque temia que o marido jamais a deixaria em paz, iria persegui-la e matá-la, caso ela se separasse.
E assim vivia, um dia depois do outro, depois do outro,depois do outro, nossa elegante e sofrida Jocineide.
Exceto aos domingos. Domingo era o único dia da semana em que sua cansativa rotina era quebrada, ou, antes, levemente arranhada por uma brisa de sossego. Era o dia em que o marido nem aparecia em casa, sumido desde sábado à noite, com o bolso cheio do dinheiro que Jocineide ganhara durante a semana.
Domingo era o dia de Jocineide arrumar a própria casa, fazer as unhas, o cabelo, cuidar-se. Era seu dia de madame, conforme dizia. Um dos momentos especiais do dia era bater um bolo para tomar com café, a mesa posta com toalha limpa, louça fina que uma das clientes lhe dera, flores no jarro. Fazer esse ritual era um verdadeiro êxtase para ela.
Depois de limpar a casa toda até deixá-la brilhando de doer os olhos, cheirosa de dar água na boca, e arrumada de enternecer, ela, elegantemente como era seu jeito, sentava-se no sofá, esticava as pernas e pegava um romance para ler, desses comprados no jornaleiro – tinha toda a coleção da Barbara Cartland. No momento em que contamos sua história, Jocineide lia Explosão de Prazer, de Seraphine O'Donnel, sua nova autora preferida. O domingo também era para isso, ler e sonhar.
Sim, porque Jocineide sonhava. Sonhava com o dia em que se veria livre do marido, com o dia em que viajaria pelo Brasil, com o dia em que teria uma casa em perfeito estado, com o dia em que encontraria um grande amor; sonhava em ser como as heroínas dos romances que lia, sonhava.
Domingo era a única válvula de escape da rotina estafante e tensa em que vivia. Domingo era o dia em que acreditava que todos os sonhos eram possíveis, em que ela se sentia quase feliz.
Tão acostumada estava a recarregar suas energias desse jeito, que praticamente entrou em estado de choque quando, inesperadamente, o marido apareceu, bem na hora em que, terminada toda a limpeza e assado o bolo, ela se preparava para o ritual de sentar para tomar café.
Bêbado, como sempre, exigindo dinheiro para pagar dívidas, sujando de poeira, lama e sem-vergonhice o chão que Jocineide deixara imaculado. Derrubou o café na toalha limpa e jogou o vaso com as flores no chão, pisoteando tudo num sapateado grotesco e assustador. Esbravejava contra ela, contra Deus e o diabo, ameaçando-a fisicamente – ameaça que, algumas vezes, já concretizara.
Jocineide ficou quieta, sabia, por dolorosa experiência própria, que reagir era pior. Depois de gastar energia nesse teatro dos horrores, o marido, finalmente, estando literalmente bêbado de cair, derrubou-se no sofá, afundando naquele profundo estado de torpor sonolento em que os muito embriagados ficam, como que desmaiados.
A amargura encheu sua boca de bile e fel. Ela vomitou ali mesmo, no chão da sala já imundo, antes resplandecente, de tão limpo. Vomitou até sair a alma.
Seu domingo perfeito irremediavelmente maculado, sua válvula de escape para sempre quebrada, chorou por mais de uma hora, até se esvaziar por completo.
Então, ainda trêmula, pegou o material de limpeza e começou a limpar tudo. Tudo mesmo, inclusive o marido inconsciente.
Trocou a toalha, ajeitou a mesa, arrumou tudo, tudo mesmo, inclusive o marido inconsciente.
Passou álcool em tudo. Tudo mesmo, inclusive no marido inconsciente.
Trocou a toalha, ajeitou a mesa, arrumou tudo, tudo mesmo, inclusive o marido inconsciente.
Passou álcool em tudo. Tudo mesmo, inclusive no marido inconsciente.
Fechou todas as portas e janelas, abriu o gás, acendeu o cigarro dele e deixou cair o fósforo aceso no sofá onde ele estava.
Saiu, fechou a porta e partiu, sem olhar para trás.
Explosão de Prazer, pensou, quando ouviu sua casa ir pelos ares.
Nada, nunca mais, iria estragar seus domingos perfeitos.
Comentários
E para variar, um "defunto", dessa vez, no final! Pelo menos desse não sobraram nem as cinzas, hahaha...
Jocineide, depois de "perder" o marido e a casa, consegue um cantinho em outra comunidade menos violenta e...
quando seus leitores ficam o tempo todo falando em continuação, estão pedindo um romance. Mãos à obra, menina!
até, porque, nosso investigador de plantão, não vai deixá-la escapar ilesa, por mais que admita que teve fortes motivos para desatinar...
quem sabe não descobrem que o marido já estava morto de tanta bebedeira e ela consegue fugir das consequências da lei?
É estupendamente bela a explosão em êxtase que, não só suas personagens têm, mas que nós leitores também temos por viver suas crônicas, Zoraya!
Suas palavras são nossa maçã do Éden.