PARA QUANDO FOR LEMBRANÇA >> Fernanda Pinho
Dizem
que é bom termos cuidado com aquilo que desejamos porque, de repente, pode se
tornar realidade. Eu nunca entendi muito bem esse pedido de cautela. Afinal de
contas, ver acontecer uma coisa que a gente tanto almeja não pode ser um
problema. Pode? Pode. Agora eu sei.
Aconteceu
que desde que eu cheguei aqui no Chile eu estava aporrinhando meu marido porque
queria conhecer a neve. Ele, que nasceu e viveu aqui desde sempre e nunca deu
trela pra esse negócio de nevar, não entendia essa minha obsessão. “Você odeia
frio”, ele fazia questão de me lembrar de vez em quando. Eu sei, eu sei. Mas eu
não estava interessada pela sensação térmica provocada pela neve. Eu queria ver
com meus próprios olhos aquele visual mágico, que sempre me emociona nos
filmes. Queria tocar na neve, senti a textura, escrever meu nome numa
superfície congelada, fazer um boneco. Enfim, queria que minha experiência,
digamos, nevística, transcendesse os flocos de isopor das decorações de natal.
Ok, ok. Com tantos argumentos repetidos insistentemente e sempre com uma nota a
mais de entusiasmo na voz, consegui o que eu queria.
Num
sábado de manhã, tomamos um ônibus de turismo e seguimos rumo ao nosso primeiro
destino: o centro de esqui de Farellones, localizado em algum ponto da
Cordilheira dos Andes. Descer do ônibus foi como abrir a Porta da Esperança.
Paisagem deslumbrantemente branca, sob um céu incrivelmente azul. Toquei a
neve, senti a textura, escrevi meu nome, tentei (e não consegui) fazer um
boneco. E, olha, já tinha me dado por satisfeita. Mas eu pedi demais e parece
que o destino resolveu me atender. Você quer neve, minha filha? Então tome
neve.
Rumamos
para o Valle Nevado, centro de esqui mais famoso do Chile e fomos recepcionados
pela principal atração local: neve, é claro. Mas não a neve que eu esperava.
Não a neve fofa pra eu pisar no chão. Era neve nevando. Os flocos caíam apressados
sobre mim, congelado meu cabelo. No início achei demais. Nossa, que sorte!
Justo hoje nevou! Depois de três horas, e com os termômetros marcando menos
doze graus, já estava querendo chamar, sei lá, o gerente e dizer que o pacote
que eu comprei não incluía neve ao vivo, que palhaçada era aquela?
Quando
deu a hora marcada para ir embora, agradeci aos céus (sem olhar pra cima, pra não cair tolosco de neve no meu nariz). Fomos os primeiros a
chegar ao ônibus e calculei: em uma hora estarei em casa tomando uma ducha
quente. Como diria minha mãe: ô dó.
Acontece
que não era uma nevasca habitual. Era uma nevasca do tipo que não ocorria há
anos. E espantou todo mundo. E era fim de férias. E a estrada era
estreita. E anoitecia. E foram tantas as variáveis que, no fim das
contas, percorremos inacreditáveis 30 quilômetros em sete (SETE!) horas.
Na
primeira hora, ainda não havia entendido a gravidade do assunto e passei
contemplando a neve caindo pela janela do ônibus, como uma garotinha de cinco
anos à espera do Papai Noel (uma garotinha que vive no hemisfério norte, claro).
Na segunda, percebendo que poderia demorar, troquei as botas impermeáveis pela
minha normal, que estava mais quentinha, e fechei os olhos esperando dormir. Na
terceira, percebi que em breve ficaríamos sem bateria e tratei de avisar às
nossas família que estávamos no meio de um engarrafamento (com o cuidado de
evitar os detalhes: engarrafamento numa estrada extremamente sinuosa, com a
pista coberta de gelo, com montanhas de um lado e precipícios de outro). Na quarta
hora, fiquei revendo as fotos e os vídeos que fizemos no passeio e agradeci
mentalmente por não estar com a menor vontade de ir ao banheiro (já que o
ônibus não dispunha de um). Na quinta hora estava desesperada de vontade de ir
ao banheiro, não sentia mais meus pés e comecei a delirar. “Amor, imagina se
seu pai tivesse um helicóptero e viesse nos salvar?”. “Amor, imagina se eu
começo a cantar uma música. Você faz a segunda voz. O motorista puxa o refrão.
Os coreanos aqui atrás começam a dançar Gangnam Style e tudo isso vira um grande
musical?”. “Amor, imagina se o motorista estiver superdeprimido, ou seja, sem
nenhuma motivação para passar por isso, e decidir jogar o ônibus num precipício?”.
Na sexta hora, decidi que deveria focar em algum pensamento mais positivo. Me
imaginei contando essa situação para minha família. Em como eu acharia graça
depois que tudo isso tivesse passado. Talvez eu até floreasse um pouco pra ficar
mais emocionante (se bem que nem precisava. A realidade já era emocionante
demais pro meu gosto). Pensei em como seria legal, sempre que alguém
mencionasse o desejo de ir ao Valle Nevado, eu dizer com ar nostálgico “nossa,
peguei uma nevasca histórica quando estive lá”. Ou quando alguém reclamasse de
um engarrafamento, eu poderia dizer com pinta de sobrevivente: “Isso não é
nada. E eu que peguei um engarrafamento de sete horas na neve!”. Lembrei de que
agora eu poderia incluir nas minhas experiências: vi a neve e vi nevar! Transformar
o imprevisto em lembrança, me confortou e, de repente, nem era tão ruim assim.
O sono veio e, finalmente, apaguei. Acordei ao final da sétima hora e me senti
acolhida pelo calorzinho de cinco graus que fazia aqui embaixo.
Comentários
Leo e Renata
Ainda bem que tudo nessa vida acaba virando história, né?