INCURSÃO XVII: DA MÁQUINA DE ESCUTAR CACOS DE VIDRO >> André Ferrer
“Suspiros, choros, gritos escutei ressoando no ar
baço de estrelas, de quanto ao começar também chorei Línguas várias,
horríveis falas delas, e palavras de dor, acentos de ira, vozes altas e roucas,
batedelas de mãos com mãos, tudo em tumulto gira, naquela aura sem tempo
destingida, como areal que um turbilhão aspira.”
(A Divina Comédia, Inferno, Canto III – Dante
Alighieri)
Era agradável caminhar
num dia quente como aquele. De quando em quando, a luz do sol penetrava o
dossel de coníferas e o nosso corpo ficava ainda mais ansioso durante a caçada
ou a pescaria.
Atravessávamos a
floresta em alerta máximo. A qualquer momento, um cervo ou galinha selvagem
poderia surgir. Tirante o peso das mochilas e dos rifles, a paisagem e o gozo
daquele intento nos aliviava. Era muito bom que as agulhas de pinheiro
crepitassem sob os nossos pés calçados com mocassins.
Há vários centímetros do chão verdadeiro, a sensação era de voo. Decerto que voávamos
auxiliados pelos despojos da floresta. Uma camada de matéria orgânica
desprendida do cume das coníferas a nos elevar ainda no primeiro ensaio. E
seriam tantos os voos futuros! Cada vez mais alta, com motivações bem distintas
da caça e da pesca, a nossa equipe repetiria a caminhada no correr dos tempos.
Ao meu lado, um ser tão
brilhante, que eu mal conseguia firmar os olhos na sua direção. Era de cor
violácea e turquesa e mudava de cor enquanto me obrigava a olhar mais adiante:
um ser opaco, ainda assim iluminado, flutuava sobre o solo verdadeiro na mesma
altura em que eu e o ser brilhante estávamos – a uma distância, é necessário
dizer, bem maior do que a de costume nas pescarias e caçadas do passado – e
isto deixava nós três emocionados – havia outros, eu sentia, mas não lograva
identifica-los.
O mais opaco era também
o tagarela: recebia-me, sempre, com alguma frase edificante e, várias vezes, já
repetida.
“Fora da caridade não
há salvação”, era uma das preferidas.
O ser iluminado, azul e
violeta, fazia-me refletir profundamente sobre a virtude do silêncio. “Quem sabe, Alan Moore tenha visitado este
plano, tamanha a semelhança do meu amigo de pescarias com o célebre Dr.
Manhattan!”, eu pensava.
“Indiferente.
Totalmente indiferente”, fez o brilhante para o ser opaco. “Escute uma coisa,
humanista crédulo e irracional. Pare de repetir sandices! Assim, você interfere
na educação do nosso protegido terreno. Cale a boca! La embaixo, a tolerância
já basta... Já é um tipo bem justo de caridade. Suportar o mundo e os homens
chega a ser heroísmo.”
Em outro episódio – não
menos “quadrinesco” –, vi-me numa geringonça voadora. Seu interior, tão exíguo
quanto ao dos nossos helicópteros militares. A minha “equipe” andava prestes a
saltar a guisa de boinas verdes, marines
ou o que o valha, porque um avião tinha despencado. Assim, o sujeito opaco
incumbiu-me do porte de uma caixa – a tal máquina de escutar cacos de vidro.
Eu estava apavorado.
Como ser menos evoluído, missões assim me pareciam confusas e misteriosas. Um
homem que não teme ações do gênero, definitivamente, ou está livre das
vicissitudes materiais ou está muito perto disso! Não era o meu caso. Portanto,
amarelei no momento do salto. Centenas de metros abaixo – muito mais alto,
evidentemente, do que uma pútrida camada de folhas podia alcançar –, um avião
de carreira jazia destroçado. Almas em cinzas, dentro e fora da área de
impacto, aguardavam o resgate. O Dr. Manhattan podia vê-los. Eu e o outro não
podíamos ver nem ouvir.
Então, o “brilhante”
afastou o “opaco”. Pediu que cessasse a tagarelice. Riu-se dele e de meia dúzia
das suas frases prontas.
“Acalme-se”, disse para
o trêmulo, que era eu. “Pense naquele regato onde pescávamos”, sugeriu.
Quando isso acontece,
meus sonhos terminam calmamente. Acordo. Lembro-me apenas de fragmentos que,
durante o dia, tento emendar e dispor com algum sentido. Naquela manhã, foi
exatamente assim.
Dr. Manhattan atirou
energia sobre mim. Lembro-me de ter entrado nos destroços. Ajudei o irmão
“opaco” – grande atirador e recordista da modalidade fly fishing –, a montar a máquina. Estávamos sozinhos. Logo, Dr.
Manhattan agia no resgate porque apenas ele podia vê-los. Da nossa parte,
juntamos as tais amostras de vidro moído e colocamos no compartimento analítico
do aparelho.
Indescritível.
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