NÃO ACORDE O DRAGÃO >> Fernanda Pinho
Quando
eu era criança, um dos meus brinquedos preferidos era um jogo de tabuleiro
chamado Não Acorde o Dragão. O jogo consistia em fazer com que quatro pinguins
completassem um circuito, carregando seus ovos em cima da cabeça. O problema é
que no meio do circuito havia um dragão e, em determinado momento, ele
acordava, rugia e fazia toda a estrutura tremer, derrubando pinguim com ovo e
tudo. A estratégia do jogo era,
portanto, evitar que o dragão se despertasse.
Com
certeza faz mais de vinte anos que eu brinquei com esse jogo pela última vez,
mas tenho pensando nele com certa frequência. Sobretudo naqueles momentos em
que constato desanimada que o mundo parece estar infestado de dragões. Fiquei estarrecida quando li a notícia do
senhor que matou os vizinhos e depois se matou por causa dos barulhos emitidos
no apartamento de cima. Esse caso foi notícia porque o crime aconteceu em um
condomínio de luxo mas, infelizmente, não é uma situação isolada.
Definitivamente, a tolerância deu seus últimos suspiros e morreu.
Eu
moro em apartamento (sempre no famigerado primeiro andar) há quase 15 anos e
sei como é: vizinho é uma encrenca e tem hora que dá uma vontade louca de, sei
lá, pegar um cabo de vassoura e dar uma cutucada no teto. Mas matar duas
pessoas e deixar uma menina de um ano órfã de pai e mãe? Não, isso não tá
certo. Enquanto a gente protesta a alta no preço de tomate, a vida passa a não
valer nada e ninguém se dá conta.
A
vida, o respeito, a empatia. Não acho que dragão seja só quem mata. É o pai que
não se abre e faz o filho tremer nas bases quando precisa ter uma conversa com
ele, é o chefe tirano que acha que hierarquia te dá o direito de humilhar os
outros, é a namorada que nunca está satisfeita e se mantém a espreita esperando
a oportunidade de explodir. Sou eu. É você. Gente do bem que na hora do
estresse dá uma rajada de metralhadora em quem só queria ajudar.
E do
que é que a tolerância morreu? Eu tenho um palpite: sufocada pela falta de
tempo. Não temos tempo para parar e resolver nossas pequenas causas, nossos
pequenos atritos externos e conflitos internos. Deixamos acumular e na hora que
pinga a gota d´água, cuspimos fogo no primeiro que tem a infelicidade de estar
na mira.
Falo
por mim que, na maioria das vezes que explodo, percebo tardiamente que não foi
só por aquele motivo usado como escape. Mas por tantos outros que deixei passar.
Minha metade dragão, vem tentando
resolver a vida em prestações, sem deixar acumular. Enquanto isso, minha metade
pinguim anda acuada, medindo as palavras e as consequências, caminhando como se
estivesse pisando em granadas (porque pisar em ovos é coisa dos tempos que em
ainda existia alguma tolerância).
Imagem: sxc.hu
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