MEMÓRIAS NÃO REVELADAS VÃO AO BORDEL I >> Albir José Inácio da Silva
- Posso pedir um uísque?
- Pára de palhaçada, garota, que você não bebe uísque. É capaz de passar mal.
Arrancou a rolha e encheu dois copinhos com a cachaça amarela que estava na mesa. Ela provou, fez uma careta desnecessária e exagerada e virou o líquido num copo de coca choca que tava segurando. Depois sorriu e tratou de agradar:
- O que é que o senhor vai querer? Por esse preço a gente pode fazer muita coisa.
- A gente sempre pode fazer menos do que gostaria, moça.
O sorriso dela ia e vinha sem saber se ficava. Examinou o freguês: paletó velho, colarinho puído e relógio parado, com algum esplendor de um tempo que já foi. Mas parece que não há risco de não pagar. Nem de ser violento. Parece aperreado, o que não facilita o trabalho, mas também não empata. Dasdô se orgulhava de sustentar qualquer prosa. E a noite só começava.
- O meu nome é Maria da Dores. E o seu?
Ele olhou através dela.
- Nicolau, como o santo. Dizem que a sua profissão é a mais antiga do mundo, mas eu duvido que a minha não tenha a mesma idade.
- E o quê que o senhor faz? Deve ser muito distinto pra usar essas roupas.
- Faço justiça, moça, ou melhor, fazia. Já não faço nada.
- O senhor é polícia?
- Muito mais que isso, minha filha. Eu fiz coisas que a polícia não sabe fazer.
- E por que parou?
- Parei não, me pararam. Fiquei desnecessário. Virei incômodo. De vez em quando recebo uns trocados e umas ordens para me esconder que o círculo está se fechando. Estão com medo que eu abra a boca. Sou, como eles dizem, um arquivo, um perigo. Temem que eu seja reconhecido por alguém “trabalhado” por mim na época. Agora estão desesperados com uma tal de “Comissão da Verdade”. É um milagre que eu ainda esteja vivo.
Reparando na cara dramática do freguês, Dasdô, profissional, quis puxar o decote até quase o umbigo, mas não ficou sexy por causa do estômago alto. Ela desistiu.
Nicolau percebeu que aquela coisinha burra e desengonçada à sua frente não estava entendendo uma palavra do que ele dizia. Mas precisava falar, estava enlouquecendo. Houve um tempo em que todos o ouviam, pediam conselhos, sugestões, como se ele fosse um deles. Houve um tempo em que admirava seus superiores. Seria capaz de morrer por eles. Agora sabe bem o que são: uns covardes, incapazes de executar eles mesmos o serviço sujo. Então vinham os elogios: “ninguém fica calado com o Doutor Nicolau, ele é o melhor!”. Esse codinome recebeu porque era devoto do santo do mesmo nome, mas, humilde, não se achava merecedor. Não era santo, era só um funcionário dedicado. Dedicado demais, avalia agora.
Mas a coisinha burra desistiu da conversa e resolveu trazê-lo de volta ao programa por bem ou por mal. Nicolau ainda regurgitava bílis e ressentimentos quando a mão pousou-lhe no joelho. E subiu pelas coxas.
(Continua daqui a 15 dias)
- Pára de palhaçada, garota, que você não bebe uísque. É capaz de passar mal.
Arrancou a rolha e encheu dois copinhos com a cachaça amarela que estava na mesa. Ela provou, fez uma careta desnecessária e exagerada e virou o líquido num copo de coca choca que tava segurando. Depois sorriu e tratou de agradar:
- O que é que o senhor vai querer? Por esse preço a gente pode fazer muita coisa.
- A gente sempre pode fazer menos do que gostaria, moça.
O sorriso dela ia e vinha sem saber se ficava. Examinou o freguês: paletó velho, colarinho puído e relógio parado, com algum esplendor de um tempo que já foi. Mas parece que não há risco de não pagar. Nem de ser violento. Parece aperreado, o que não facilita o trabalho, mas também não empata. Dasdô se orgulhava de sustentar qualquer prosa. E a noite só começava.
- O meu nome é Maria da Dores. E o seu?
Ele olhou através dela.
- Nicolau, como o santo. Dizem que a sua profissão é a mais antiga do mundo, mas eu duvido que a minha não tenha a mesma idade.
- E o quê que o senhor faz? Deve ser muito distinto pra usar essas roupas.
- Faço justiça, moça, ou melhor, fazia. Já não faço nada.
- O senhor é polícia?
- Muito mais que isso, minha filha. Eu fiz coisas que a polícia não sabe fazer.
- E por que parou?
- Parei não, me pararam. Fiquei desnecessário. Virei incômodo. De vez em quando recebo uns trocados e umas ordens para me esconder que o círculo está se fechando. Estão com medo que eu abra a boca. Sou, como eles dizem, um arquivo, um perigo. Temem que eu seja reconhecido por alguém “trabalhado” por mim na época. Agora estão desesperados com uma tal de “Comissão da Verdade”. É um milagre que eu ainda esteja vivo.
Reparando na cara dramática do freguês, Dasdô, profissional, quis puxar o decote até quase o umbigo, mas não ficou sexy por causa do estômago alto. Ela desistiu.
Nicolau percebeu que aquela coisinha burra e desengonçada à sua frente não estava entendendo uma palavra do que ele dizia. Mas precisava falar, estava enlouquecendo. Houve um tempo em que todos o ouviam, pediam conselhos, sugestões, como se ele fosse um deles. Houve um tempo em que admirava seus superiores. Seria capaz de morrer por eles. Agora sabe bem o que são: uns covardes, incapazes de executar eles mesmos o serviço sujo. Então vinham os elogios: “ninguém fica calado com o Doutor Nicolau, ele é o melhor!”. Esse codinome recebeu porque era devoto do santo do mesmo nome, mas, humilde, não se achava merecedor. Não era santo, era só um funcionário dedicado. Dedicado demais, avalia agora.
Mas a coisinha burra desistiu da conversa e resolveu trazê-lo de volta ao programa por bem ou por mal. Nicolau ainda regurgitava bílis e ressentimentos quando a mão pousou-lhe no joelho. E subiu pelas coxas.
(Continua daqui a 15 dias)
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