Parem este ônibus >> Alfonsina Salomão
« Parem este ônibus, meu filho está lá dentro! Parem este ônibus, meu filho está lá dentro!”.
Eu repetia esta frase aos berros ao mesmo tempo em que corria. Estou acostumada a ser a mãe que grita no meio da rua, pois desde que Enzo sabe andar ele vai pra onde quer quando quer, me obrigando a correr atrás: “Cuidado com o carro, não atravessa, espera a mamãe!”. Enzo nunca teve medo de se perder ou machucar, ou talvez ele sempre tenha confiado que eu estaria logo ali, dando um jeito de acompanhá-lo. Ao ver esta cena, amigos e familiares sugeriram mais de uma vez que eu o amarrasse com uma cordinha ou algo que o valha. Mas preferi manter sua liberdade, enxergando com bons olhos a autonomia e confiança em si mesmo do pequeno, apesar dos sustos – confesso que já o perdi algumas vezes.
Mas desta vez a coisa tomou proporções inimagináveis. Se é cansativo correr atrás de uma criança, correr atrás de um ônibus é desesperador. E desta vez a culpa nem foi dele... Estávamos no ponto, ele brincando, eu selecionando fotos no telefone, quando o ônibus se aproximou. Chamei, “Enzo, vamos, o ônibus está chegando!”, e me distraí. O montinho de pessoas que estava na minha frente entrou e chegou nossa vez. Olhei para os lados para dar a mão ao Enzo, mas não o vi. “Talvez ele tenha entrado sem eu perceber”. Mal tive tempo de formular este pensamento e o motorista fechou as portas. Bati com força. O motorista olhou na minha cara e acelerou.
Fiquei ali plantada. Acabara de inventar o segundo “dilema do ônibus”. O primeiro é aquele em que você já esperou um tempão e começa a pensar que talvez seja melhor pegar outro modo de condução. O que fazer: esperar indefinidamente por um ônibus que talvez não chegará, ou ir embora, correndo o risco de o ônibus chegar no instante seguinte, fazendo com que toda sua espera tenha sido em vão? Todo mundo que pega ônibus passou por isto um dia. O meu dilema do ônibus foi um pouco mais trágico. O que fazer: olhar atentivamente em volta e me certificar que Enzo não está brincando no ponto, perdendo assim preciosos segundos na corrida contra a máquina, ou sair correndo imediatamente, assumindo o risco de deixá-lo sozinho na calçada?
Um brevíssimo cálculo me fez escolher a segunda opção. O ônibus em questão atravessa a cidade horizontalmente, indo do bairro pacato onde moro até um dos lugares mais badalados de Paris. Prefiro perder Enzo perto de casa do quê num lugar onde ele nunca esteve. Saí correndo o mais rápido possível. Logo eu, que nunca gostei de correr; que sofri as piores humilhações da vida nas aulas de educação física, quando a gente era obrigado a correr em volta da escola; que nas pouquíssimas vezes em tentei correr para manter a forma achei que meu coração fosse parar; que sou alérgica ao meu próprio suor e fico com as bochechas queimando e o pescoço coçando ao cabo de poucos minutos de esforço. Logo eu, a anti-heroína da corrida, deveria alcançar o ônibus no próximo ponto ou perder meu filho para sempre. Como se não bastasse, estava carregando, além da bolsa, a mochila do filho, a sacola com o lanche e a cartolina com os desenhos. Ah, e é claro, estava sem sutiã.
Pensava nestas coisas enquanto corria e observava o ônibus se distanciar exponencialmente. Também pensava que deveria ter tido filhos aos vinte anos, que loucura virar mãe depois dos trinta. Mas o pior pensamento era a lembrança de um livro que li ainda este ano, Véspera, da envolvente Carla Madeira. O livro começa com uma mãe exasperada que faz o filho descer do carro e o larga na calçada. O menino do livro tem cinco anos e meio, idade do Enzo quando o li, e um temperamento parecido com o dele. A mãe larga o filho na calçada, entra no carro, parte sozinha e, pouco depois, se dá conta do que fizera. Alguns minutos mais tarde, quando enfim ela consegue retornar ao local onde abandonou o rebento (tratava-se uma avenida de mão única), ele não está mais lá. O livro inteiro se desenrola sem que a gente saiba se a mãe arrependida e culpada conseguirá recuperar o filho. A enorme angústia que senti durante esta leitura se multiplicou por mil enquanto eu corria atrás do ônibus. “Me distraí por alguns minutos e agora vou passar o resto da vida sem o Enzo”, pensava.
Nestas alturas, além de correr eu também berrava, consciente de que se ninguém me socorresse a lei de Murphy agiria em meu desfavor. O ônibus estava parado no ponto seguinte, as últimas pessoas acabavam de embarcar e as malditas portas iriam se fechar novamente, me deixando comer poeira por uma questão de segundos. Logo antes do ponto, grupinhos de adolescentes fumavam na saída da escola e me olhavam estarrecidos, mas não se mexiam. Minha vontade era de gritar: “Façam alguma coisa, bando de imbecis blasés”, mas me ative às mesmas informações essenciais: “Parem este ônibus, meu filho está lá dentro!”. Foi quando um adolescente surgiu do outro da calçada, me olhou nos olhos e, numa fração de segundos, correu bem mais rápido do que eu. Devo dizer que era uma subida e eu, que vinha correndo desde o ponto anterior, estava começando a perder o fôlego.
Não tive tempo de trocar nenhuma informação com o rapaz, mas confiei que ele estava correndo pra mim e continuei correndo. Graças a Deus não me enganei. Quando cheguei meu anjo salvador estava em pé segurando a porta do ônibus. Ele me deu um sorrisão e disse: “Tudo bem madame, ele está lá dentro”. Agradeci rapidamente, decerto não da forma que ele merecia, eu estava por demais estabanada e emocionada para agir corretamente. Fui logo dando esporro no motorista : “Você não abriu a porta quando eu bati, sendo que meu filho de seis anos está sozinho aí dentro! Putain!”. Estarrecida, notei que ele me respondia à altura e não tinha a menor intenção de se desculpar, pelo contrário. Suas palavras chegaram a mim como um conjunto ruidoso desrespeitoso e desagradável, do qual não discerni nenhuma palavra. De toda forma eu não estava em condições de bater boca com o motorista. Desviei a atenção e me concentrei nas pessoas que gritavam, do fundo do ônibus: “Ele está com a gente madame!”.
Vi o Enzo sentado nas últimas cadeiras do ônibus. Corri até ele, me assentei ao seu lado e desmoronei. Para minha surpresa, comecei a chorar e soluçar, incapaz de pronunciar qualquer palavra. À minha frente uma mãe com seu filho, que devia ter a idade do Enzo, me encarava atônita. Era uma dessas mães francesas cujas proles estão sempre silenciosas, assentadas direito e com as roupas limpas. Ela parecia meu reflexo invertido no espelho, a mãe competente que criou uma criança obediente e jamais passará a vergonha de chorar aos prantos depois de correr e gritar bairro afora atrás de um ônibus. Felizmente a senhorinha sentada ao lado me ofereceu uma bala. Aceitei por educação e cética quanto à eficácia do gesto, mas percebi que chupar a bala me ajudava a manter uma calma relativa.
Chegamos em casa e continuei chorando e soluçando, sentada no chão com a cabeça entre os joelhos, depois de ter trancado a porta à chave para ter certeza de que Enzo não iria a lugar nenhum. Ele buscou a caixinha de música no seu quarto, deu corda e me encheu de beijinhos. Não sei dizer quanto tempo se passou assim... Quando recuperei o controle das minhas emoções, perguntei ao Enzo se ele percebeu que eu não estava no ônibus, ele respondeu que não. Com um sorriso maroto, ele acrescentou : “Mamãe, você falou aquela palavra que começa com ‘pu’”. Putain é o palavrão francês por excelência. Derreti. Se esta foi a única coisa que o marcou, então está tudo certo.
No fim de semana seguinte, numa festa de família, minha sogra me surpreendeu! Eu estava contando esta história para as irmãs do Vincent quando ela se aproximou. Eu ia me interromper quando decidi que “foda-se, ela que pense o que quiser”. Foi-se o tempo em que eu buscava corresponder ao seu ideal materno. Quando terminei de contar, ela simplesmente comentou, com um sorrisinho: “toda mãe parisiense já passou por isso”.
Hoje quem escreve é Nina Said, autora do blog minhasografrancesa.com
Ps: a foto que ilustra o texto é de um imenso cano que desemboca no mar e cujo acesso é proibido ao público. Dois anos atrás Enzo pulou a correntinha e correu até o final, e lá foi a Nina correndo atrás...
Comentários
Tô aqui me acabando de rir e morrendo de pena! E me identificando em tudo!
Não só mães francesas fazem isso, mas uma boa mãe humana sempre perde por alguns minutos seus filhos! É horrível porque mostra que não temos controle de nada; e muito bom, porque mostra que não temos controle de nada...