JUÍZO FINAL >> Albir José Inácio da Silva
Ainda bem que o mundo não acabou no dia marcado porque eu tinha
aí umas pendências. Uns malfeitos pra desfazer, uns pecados pra confessar. E
até um menino pra assumir - que Zefa vai pular nas tamancas, mas não posso ir
assim pro julgamento final.
Padre Antônio falou que o mundo vai acabar sim, mas não é agora não, faltam
alguns anos. Ele faz cara de que sabe quantos, mas não diz. Eu não acredito
porque já peguei outras mentiras dele. Ainda mais depois do que fez com aquela
moça antes donzela, que ele inventou que tava com demônio e ela teve de fugir
pro Rio de Janeiro.
Pesa na minha consciência uns palmos de terra do Aderso. Verdade que eu cheguei
a cerca pra lá depois que as vacas derrubaram, mas foi pra compensar uns
prejuízos. Quantas vezes falei pra tirar os animais do meu sítio e ele não
escutou. Mas isso é coisa pouca.
Outra pendência que preciso resolver antes de o mundo acabar é aquele moleque,
o Dão. Eu já nem o contava mais como pecado, tantos anos sem notícia de
Esmeralda que tinha sumido pros lados de Minas. Foi minha sogra, que sabe tudo,
o que não sabe advinha, que apontou o molecão na rua:
- Olha ali o filho da sua pouca-vergonha.
Parecia comigo mesmo. Mas o pior veio no domingo, ele me tomou a bênção na
saída da missa, na frente de todo mundo.
A culpa foi também de Esmeralda. Andava me deitando uns olhares, eu já casado.
Chamei pra ver um cabritinho doente, que ela tinha muita pena de bicho. Entrou
no paiol toda sorriso, cheiro e dengo. Verdade que ela disse que não queria, mas
eu acho que queria.
Tudo isso se resolve. Volto a cerca pro lugar, dou uma desculpa, e Aderso ainda
vai me agradecer. Uma tapeada na Zefa, um corte de pano, um pó de arroz,
registro o menino, ajudo a acabar de criar que ele também já está grande, e
pronto. Até o padre safado vai ter que me dar absolvição. Mais difícil é o caso
do Silas, aquele cão.
Veio me desfeitear na beira do rio por causa de uma discussão na bodega do
Juca, e foi pra dentro d’água com a cabeça rachada. Ninguém sabe, ninguém viu,
mas andaram desconfiando na época. O sargento chegou a perguntar onde eu estava
naquele dia. O caso acabou como escorregão e afogamento.
Isso eu não confio de confessar pra Padre Antônio, que já não gosta mesmo de
mim e eu posso acabar na cadeia. Tenho que pensar melhor. Talvez eu vá pra
Minas, um lugarzinho do interior, fico uns dias, confesso com padre de lá,
desconhecido. Uma ofertinha, uma penitência, umas ave-marias, e volto pra cá
com tudo resolvido.
Só não posso fazer que nem das outras vezes. Fico adiando, adiando, chega de
novo o último dia e me pega de calça curta, cheio de pecados e sem absolvição.
Já passei da idade de brincar com coisa séria. Esse mundo é perigoso.
Ainda bem que no céu não vai ter cabocla sonsa, vizinho safado nem cabra
desaforado. Nada de filho bastardo ou padre sem-vergonha. E não tem a Zefa
falando pelos cotovelos. Acho que eu vou gostar de lá, sabe!
Obs: Este texto faz parte do Projeto Crônica de um Ontem
e foi publicado originalmente no Crônica do Dia em 30 de maio de 2011.
Comentários
Adorei o jeito que vc escolheu fazer essa narrativa, em primeira pessoa, adorei a maneira da fala-pensamento. Parecia mesmo que eu o escutava falar, até sotaque ouvi aqui.
E que safadinho esse seu personagem! Bem conveniente confessar uns deslizinhos e ir pro céu, né? Tá facinho, facinho...
Traz mais desses contos pra gente?