CONFLITO >> whisner fraga




o cara esbravejou de quem é o carro branco e eu seguia focado nos números pingando no visor, não me atentei, ele repetiu, mais específico: o clio, olhei para trás e só um carro branco e só um clio no estacionamento e era meu, ergui o braço direito, como na classe da quinta série e esclareci é meu, ele exigiu que o removesse de lá, pois atravancava o acesso dele ao outro veículo, o do lado, quando me levantei, aluado, derrubei todos os envelopes e a vizinha me auxiliou, recolocamos no banco, empilhados, desfilei vagarosamente até a porta do automóvel, à guisa de provocação, atendi o pedido, feito até de forma atabalhoada, acumulei uns apoios do público, dada a cena repugnante para as nove e trinta da manhã, mas nem me importei, a desfeita me coube como vingança, 

entretanto, nada é assim, essa empatia conivente não integra o comezinho da realidade, e danei a cismar, eu não me reconhecia possuinte de qualquer coisa, é até lugar-comum este silogismo, para ser chique: existiam o papel passado, o despachante, o cartório e toda essa logística para facilitar os logros, e, até ali, tudo confabulava para me ceder uma propriedade que eu considero mais um empréstimo,

esses pronomes possessivos me pertubam, a ser franco, a posse requer um possuído e um possuidor e, quanto ao primeiro termo, há um timbre de domínio, de força e eu sou contra essas agressões, mas como tirar esse ranço de um vocábulo que não tem culpa de nada?, vou meditanto nisso,

a moeda costumeiramente tem duas faces e ouvi algumas vezes que não se acha almoço grátis e, embora eu nutra notáveis dúvidas quanto a isso, há outros desdobramentos, como a cerveja gelada, os discos, livros, os presentes dos amigos, demais luxos, que me carreiam a um tópico consequente, sem dissecar aqui, mas em outra oportunidade: o espólio, o usufruto, o litígio, todas essas vicissitudes advindas da propriedade: venho sopesando tudo isso, sem intuitos de uma nova tese, apenas para abrandar essa tristeza que me controla, há dias.


(imagem por alexander lesnitsky, do pixabay)

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Um texto, várias leituras. Algumas tristezas. Estranho como pequenos acontecimentos da vida despertam profundezas.
Nadia Coldebella disse…
Vicissitudes advindas da propriedade, inclusive daquela imaginária, que uma pessoa acha que tem sobre a outra.
Um texto digno do nosso tempo!
Gde abraço!

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