ESTRELAS E TROVOADAS NO MONTE - final >> Albir José Inácio da Silva

 

(Continuação de 27/12/2021)

 

Pessoalmente Moisés não tinha nada contra Emanuel, mas precisava dar uma resposta à comunidade. Os anciãos tinham razão, aquela subversão podia se espalhar. O moleque não era um baderneiro qualquer, em quem ele mandasse aplicar uns bolos e devolver pra mãe. A transgressão agora tinha outra natureza. Mandou trazer o herege.

 

O “Estado” de Israel estava organizado. Havia divisão de tarefas, de lucros e de jurisdição. O morro, pacificado, não sofria mais invasões da polícia ou de outros grupos. O arrego* era pago em dia e, depois da conversão de Moisés, ele e o comandante viraram amigos de infância.

 

Emanuel não era um trombadinha que precisasse de castigo.  Era coisa séria, de rebelião, de subversão. Por isso Moisés entendeu que era competência do DPO. Mandou levar o herege.

 

O JULGAMENTO

 

A jurisdição penal estava dividida: o movimento punia xis-noves, pequenos furtos, dívidas de drogas e macumbaria - esta já proscrita no morro há alguns meses. A milícia cuidava de roubos, armas – proibidas aos moradores, crimes financeiros - como comprar gás, internet e contrair empréstimos fora da comunidade, ou não pagar taxa de proteção. A milícia se encarregava ainda do crime eleitoral, que era não votar no candidato ungido, cuja foto estava em todas as paredes e a colinha era distribuída nas escolas, no comércio e nos púlpitos.

 

O comandante olhou para Emanuel algemado, tinha idade de seu filho, não parecia perigoso. Releu as mensagens de Moisés sobre o tumulto na igreja e as reuniões clandestinas com os indesejáveis, e escreveu de volta:

 

- Brother Moisés, a conduta que você descreveu para o elemento em questão é pecaminosa, sem dúvida, mas não é crime, e a polícia não se mete com religião.  De qualquer modo, vou aplicar aqui um corretivo e mandar de volta. Sugiro que ele seja expulso pelo movimento e proibido de retornar à comunidade, sob pena de micro-ondas! A paz, irmão!

 

O dono do morro estava preocupado, o comandante não entendeu a gravidade. Não era só pecado. O frágil equilíbrio de poder no morro estava ameaçado. Garotos abandonavam a igreja e o movimento. Os malditos celulares enviavam sorrateiramente imagens para fora do morro, com mentiras e distorções para inflamar a opinião pública contra Israel e sua administração. E Emanuel coordenava essa malta, com suas reuniões no alto do morro, desarmadas, é verdade, mas perigosas do ponto de vista ideológico.

 

Moisés mandou o subversivo de volta ao DPO, seguido de um longo telefonema.  Argumentou que ele pregava o não pagamento da taxa de proteção, a compra de produtos e empréstimos fora da favela e, segundo informações, enviava vídeos aos jornais, às corregedorias e ao Ministério Público. “Esse moleque teve a sua chance, comandante, mas escolheu o caminho do mal”, concluiu.

 

Dessa vez o comandante não olhou para Emanuel. Lavou as mãos diante dos presentes, e o entregou aos milicianos.

 

TUDO ESTÁ CONSUMADO 

 

O prisioneiro foi levado para um lugar de desova** chamado esqueleto.

 

Quando Mariana chegou, o filho estava caído com ferimentos nas mãos, nos pés e no flanco esquerdo. Ela se ajoelhou ao seu lado e ligou para a ambulância, mas o socorro não veio.

 

Às seis horas da noite faltou luz na favela. Às nove, trovoadas fizeram tremer o chão, relâmpagos iluminaram o rosto de Mariana e a chuva lavou-lhe as lágrimas. Quando a luz voltou, ele estava morto.

 

Dois outros bandidos foram passados*** naquela mesma noite para aproveitar os trovões, a falta de luz e o relatório – explicou o comandante.

 

Durante a madrugada, soldados que guardavam a cena até a chegada da perícia tiraram sorte para saber de quem seria o celular barato que estava no bolso de Emanuel.

 

Na manhã seguinte, chegou o rabecão - dispensada a perícia porque foram apenas mortes em confronto. E Mariana foi amparada de volta ao seu barraco.

 

*Arrego: valor pago a policiais corruptos em troca de prevaricação;

**Desova: descarte dos corpos dos inimigos;

***Passados: executados.

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Ai, Albir, escrito desse jeito, essa releitura moderna, dá muita dor no coração.
Poxa vida! Sensacional e doloroso, nem tenho o que dizer.
Posso esperar o terceiro dia e ver se alguma pedra vai rolar?
Parabéns pelo olhar tao afinado e sensível.

Grande abraço
branco disse…
preferi esperar todas os "capitulos" ...mestre albir, surpreendentemente diferente e rotineiramente grande. Srmore uma descoberta sobre seus dons.
Zoraya Cesar disse…
Eu sabia, eu sabia, eu sabia q ia acabar desse jeito. Mas como resistir ao estilo de D. Albir? Não tem como!
Albir disse…
Obrigado, Nádia, Branco e Zoraya!
Paulo Barguil disse…
Eu, tolinho, acreditando que haveria um final diferente. Pelo menos aqui...

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