TRÊS CIGARROS E UM CINZEIRO >> Zoraya Cesar
O amor não é uma “coisa” estranha – o amor é um ser quase humano, tais suas emoções e caprichos, capaz dos atos mais sublimes e execráveis. Às vezes acredito que o amor é invenção do Demo.
Minha tia Jurema deitou as cartas – comuns, sabe, sem frescura, nada de baralho cigano, tarô, não senhor, baralho de mesa de jogo mesmo, sebento e usado – e disse que se eu ficasse com ele encontraria meu destino nas cinzas. Sempre achei esse negócio de cartas uma bobajada. Tudo bem que a casa de tia Jurema vivia cheia, era madame, faxineira, gente honesta, trambiqueira, crentes e descrentes, porque ela era porreta, sabe? Ajudou muita gente. A mim não ajudou não. Nunca acreditei nessas coisas.
Sou loucamente romântica, no entanto. O senhor veja, Lando sempre foi o homem da minha vida, nunca tive outro, desde os meus 15 anos, e já se passaram muitas águas desde então.
Ele era lindo, um moreno de 28 anos, arrasa-quarteirão, podia ter a mulher que quisesse, mas se enrabichou comigo. Não queria saber de mais nada, só de ficar com ele, me sentindo adulta e matadora, pois conseguira o cara mais arretado das redondezas.
O senhor já se apaixonou? Pois devia. Quem não conheceu as entranhas de uma paixão nunca viveu de verdade. Basta uma vez, não precisa ser uma vida inteira, como eu.
A gente fazia muito sexo, mas ele dizia que se eu engravidasse me largava, não queria meu corpo estragado. Pra não emprenhar, mastigava umas ervas que minhas tias me davam – tudo um bando de rezadeira, macumbeira, feiticeira (só eu não acreditava nessas baboseiras. Minha avó dizia que eu era a telha fora do lugar no telhado perfeito). Acabei deixando passar a vontade de ter cria, envelheceríamos juntos, só nós dois, o único macho que tive na vida, meu único amor. (Como disse ao senhor, sou muito romântica). E o importante, importante mesmo, é que ele casou comigo de papel passado, o senhor acredita? Claro que acredita, tá aí, a papelada toda da minha vida na sua frente.
(Mas sabe, doutor, a vida da gente não cabe aí, não tem letra nem palavra nem poeta que possam descrever as sutilezas, os cheiros, os olhares, os dizeres do pensamento, sabe? Você olha pra minha vida toda aí na sua frente e não é capaz de dizer qual meu perfume favorito. Qual a comida preferida do Lando. O quanto eu já ri ou chorei. O senhor não sabe de nada olhando aí, pra esses papéis.)
No dia do casamento eu era a mulher mais sorridente do mundo. Olha aí, na foto, tá vendo? E o Lando, tão elegante... Eu tratava muito bem do meu homem. Trabalhava como uma moura pra ele ter do bom e do melhor. E nunca me desleixei, não senhor! Ó, calma que não vou fazer nada não, só vou levantar pro senhor ver, nem um nadica fora do lugar, tá vendo?. Não tenho mais 15 anos, mas continuo gostosa, né? O Lando sempre me comeu. Ele dava umas escapulidas, mas e daí? O senhor mesmo, todo sério, mó aliança grandona aí no dedo, duvido que ainda não tenha pegado a escrivã, aquela ali, no canto esquerdo, com cara de songamonga. E aposto que sua mulher sabe. Mas faz vista grossa, porque ela não quer separar, né?
Fui muito feliz. Pode acreditar. Quando a mulher é como eu, mansa, boa de cama, apaixonada e jeitosinha, consegue tudo. Nunca enchi o saco dele por ciúmes. Ele era tão bonito! Porque outras mulheres não o haviam de querer?
O senhor não precisa ver na papelada não, basta me olhar pra perceber que o tempo não foi gentil comigo. Mas o Lando, quanto mais velho mais bonito e desejável, a mulherada assanhada atrás (e na frente, em cima e embaixo, se me perdoa a brincadeira numa hora grave dessas). Mas, o senhor sabe, nunca me preocupei, porque ele sempre voltava pra casa, pra mim.
Sempre? Sim, até que uma noite, no bar, uma mulher, nem era das mais bonitas não, chegou, foi direto pro Lando, e, sexy demais, apagou o cigarro no nosso cinzeiro. Silenciosamente, ele se levantou e seguiu-a porta afora, sem sequer virar para trás.
Fiquei ali, a olhar fixamente os restos dos três cigarros num cinzeiro onde só deveria haver dois. E nesse momento eu soube que, dessa vez, Lando não voltaria. Fui para casa aos pedaços, me desfazendo como fumaça ao vento.
Semanas depois ele veio dizer que tava na hora de ter outras experiências, ainda era um homem novo, a mulher que eu vira estava grávida dele… Eu nada disse. Ajudei-o a empacotar as coisas – coisas que eu havia comprado ao preço da minha alma - e dei o maço de seus cigarros prediletos.
O resto o senhor sabe, polícia sabe tudo. Minha Tia Jurema tava certa – embora eu continue não acreditando nesse negócio de cartas. Meu destino se ligou às cinzas. Às cinzas cheias da ricina que coloquei no cigarro dele.
História livremente baseada numa canção antiga,
Three cigarretes in an ashtray, gravação de Patsy Cline (vídeo com legendas)
Comentários
Esse texto precisa ser letra de música!
Vc sabe ficar inspirada, né? Esses crimes de amor me matam!
Adorei vê-la contando, num depoimento. Meio bizarro, meio desesperador, mas ela ter uma plateia é, com certeza, a cereja do bolo.
História diferente, ingredientes diferentes. Adorei a linguagem "declaração de amor e de culpa". Muito bacana!
Mesmo quando você troca a hemorragia pelo veneno.
Obrigada aos dois, pela leitura e comentários!