TEXTURA >> Carla Dias
Nunca o chamou pelo nome, nem mesmo depois de ele invadir seu quintal e decidir voltar todos os dias, sempre no fim da tarde. O vizinho acabou desistindo de tentar mantê-lo no próprio quintal. Firmou-se assim, sem vocábulos que endossassem o trato, a guarda compartilhada.
Nunca o chamou pelo nome, nem mesmo depois de se tornarem íntimos, e ele passar horas em sua companhia, e, vez ou outra, aproximar-se com a gentileza estampada no olhar, amansando tudo dentro dele: temores, mágoas, faltas. Nem mesmo quando o Border Collie não estava mais lá e o homem desejou gritar por seu nome, até que ele voltasse.
Há algum tempo, os sons o abandonaram e ele passou a hospedar um espírito desenganado. Toca as paredes em busca de amparo para evitar tombos. Às vezes, é tomado pela ideia de que elas não lhe pertencem, são mãos emprestadas. A textura da pele, prova concreta da passagem do tempo, que desaponta aquele que acredita que jamais envelhecerá.
Evitar tombos é tarefa cotidiana. Não quer se render a eles e se tornar quem não sabe juntar os próprios cacos. Acontece de se agoniar imaginando como seria chegar a esse lugar de impotência determinada a dominar sua existência.
Os sons o abandonaram, por isso aprecia tocar as janelas e sentir a vibração do que lá fora é vivo, arrebatador. Não sabe mais decifrar esses gritos. Seriam de dor ou prazer? Medo ou deslumbramento? Pensava que teria tempo para o que agora amarga não ter feito, sentido, experimentado: lugares inéditos à sua presença, pessoas capazes de lhe provocar intensidade e espontaneidades, aprendizados que o tornassem mais consciente de tudo, de outros, de si.
Pergunta-se, recuando diante da pronúncia das palavras: quantos tempos o tempo de uma pessoa tem? Porque o tempo que ele vive agora não parece justo, apenas longo.
Escandaliza-se com legendas: carro ultrapassa em alta velocidade, bate em mureta e se afoga no mar azul. Preço do descafeinado triplica, seguindo as normas da numerologia. Uma tarde no shopping pode levar à falência se você aparecer lá no dia em que recebeu seu salário. Disputa acirrada pela última vaga no ônibus espacial: há sempre alguém querendo pagar mais.
O silêncio o acorda com seu hálito de novidade, então o acompanha, sem alterações ou rompantes, até que ele se pegue novamente de olhar vidrado na pele que parece papel amassado, de se rasgar mediante um leve atrito com a quina da pia, quando a sede exige que ele se levante para matá-la.
Suas pálpebras obedecem ao peso da necessidade. Fecham-se, não importa se o seu desejo seja o de permanecer desperto, observador, curioso.
E se eu me perder de não saber voltar? Quem me ressuscitará na sua memória?
Então, o silêncio o coloca para dormir. E antes de cair nos braços da noite, ele canta uma velha canção que já não escuta mais.
Desperta.
Imagem © kirillslov por Pixabay
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