A MENTIRA >> Whisner Fraga
Os dedos da criança peregrinam pelo dorso da maçaneta.
As máquinas estão sob controle e não espalham ameaças pela tarde imponderada.
O pai observa a curiosidade mística da filha, próxima ao mecanismo desacordado. Engrenagens sonolentas também espreitam mãos que brincam. E logo o trinco ferroa a carne e um veio de sangue se infiltra na solidez precária da segurança.
O pai acode o desespero da filha, mas não está preparado para a investida da dor contra a idade vulnerável. Por enquanto não percebe que estamos expostos e estaremos para sempre apenas nos desviando da fatalidade.
Ela só desejava a suavidade do banco veludoso massageando as costas e a porta do carro a apartava dessa ganância.
O pai recolhe o corte em uma calma premeditada e aloja a ferida na barra da camisa, tentando estancar o medo.
O dia resiste em sua alegria desafeiçoada. Por que não se atormentam mais com a angústia de outra pessoa? Por que ninguém se acerca, se compadece, oferece uma fatia de humanidade?
Por que um disparo casual em uma tela de cinquenta polegadas é apenas uma morte que encontra a cabeça de um inocente e é esquecida até o próximo jornal?
Por que todos se aproveitaram da caridade de um Deus fictício?
A menina acha bonito o rosa infectando o tecido azul, enquanto pressente que uma revelação se desvencilha da mentira e avança, metodicamente, como uma gota de tinta rastejando pela água em um copo e descobre que dali a pouco não será mais tinta nem se tornará água.
Dali a pouco o pó tomará conta de nós e nos substituirá e não seremos nem vida nem morte.
A menina percebe tudo.
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