NOTAS SEM TÍTULO >> Fred Fogaça
Dia desses eu fui jantar e tinha coração numa panela.
Corações, né. Tinha muito coração. Me lembrei: sabe quantas galinhas
morreram pra você poder comer isso aí?, ela olhava pro prato e fazia
cinco com a mão, cara de quem não se arrepende e ainda por cima sorria.
Depois que eu descobri que o da panela nem coração era, mas já valeu a
lembrança. Quase um vacilo. Igual outro dia, zanzando pela cidade de
carro vi um acidente na avenida, desviei, olhei o coitado e cantei Chico
Buarque. Aquela música lá. Tudo bem que não lembrava direito a letra
mas a pessoa comigo também não entendeu a referência. Não conhecia muito
da música popular brasileira e de repente nem gostava até. Fiquei tanto
um pouco envergonhado quanto um pouco saudoso. Dói uma piada mal
empenhada, mas é que ela teria entendido.
Teve um outro dia, conversando sobre ter casas, decorar casas, comprar
casas... disse que queria passar um tempo em alguma nas montanhas, me
hospedar ou mesmo morar um período - um clássico - e me olharam com
estranheza. Pareceu como se aquilo não fosse nada que coubesse no
assunto àquela hora e inclusive ninguém quisesse. Quis ter alguém pra
concordar comigo. Puta ideia boa, não
tinha necessidade de aprovação alheia, mas é uma cruzada inglória
sustentar uma opinião solitária. As vezes eu não queria não. Talvez eu
entenda essa opinião também, esses lugares não têm internet e hoje em
dia não se conhece mais o torrent.
Quando eu penso nessas casas, não deixo de considerar a distância segura pra civilização, e toda aquela tranquilidade profunda. Praticamente uma loucura. Similar ao sentimento daquelas telas do Vincent, de quando ele se mudou pro sul da França e pintou paisagens felizes. Quase felizes, na verdade. Ele se esforçou bastante, né. Dá pra ter ideia do clima. Alguém provavelmente já pintou alguma melhor que representasse, mas andava lendo sua biografia e me compadeci, ele devia saber bem sobre a imprudência da serenidade.
Teve a velhinha do ônibus. Simpática a ponto de, entre a Barra da
Lagoa e a Lagoa da Conceição, me oferecer um serviço de lavagem de
roupas, companhia e café. Me disse da casa, deu um endereço, e falou dos
vizinhos. Eu tinha todas as referencias. Não tinha certeza de que algum
dia iria voltar, não pra morar, mas anotei tudo e tirei uma foto pra
guardar. Pra me lembrar, se eu demorasse. Estava perdido e não podia
estabelecer certezas, como ainda devo estar agora. Também o luxo das
convicções, sigo evitando. Mas ainda devo visita-la, eu prometi.
Ainda sobre ônibus, teve outro velhinho. Enquanto eu e um amigo
esperávamos pelo próximo, ele destilou histórias picantes entremeadas de
juras de amor pela falecida esposa. Que Deus a tenha, ele repetia sem
exceção, quando a citava. Tinham também mais algumas cartas, sem final,
nem destinatários mas que, de modo geral, eram súplicas inocentes e
vergonhas que (graças a seja ao que tenha sido responsável) evitei de
passar. Merecem a recordação. Ainda muitos resquícios de textos que não
fiz.
Enfim.
Perscrutando essas anotações entre o receio da nova empreitada e o
de não ter o que escrever, acabei retornando aos lugares comuns da
minha atenção, e quando revisitei as fundações dos meus textos, percebi
uma desordem. Pode até ser que se ofusquem as perspectivas,
mas só muito a princípio. O embaralhamento das ideias não amedronta: ao
contrário: descanso a coragem, são sinais do bom augúrio.
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