HÁ MAR >> Carla Dias >>
Há mar que é de calçada. Escorre, languidamente, pelos braços dos bueiros, carregando as crias da impassibilidade de muitos sobre o que entope as veias da felicidade. Misturam-se ali, naquele desaguar: caixas de papelão, roupas puídas, sapatos que se perderam de seus pares, bitucas de cigarro, uma e outra carteira afanada no afã da velocidade de fugitivo de carreira.
Outro dia, havia um corpo sendo banhado por esse mar. Ninguém parou para observá-lo. Ficou ali, feito enfeite defendendo o poder da indiferença, até que a força das águas intrigadas - e seu perfume fúnebre - o levaram embora. Não se sabe para qual código postal.
Há mar que é revolto. Invoca longos e pesados silêncios, para então se rebelar, entoando a necessidade de conversa. Então, discorre sobre fugas e imodestos planos, como o de se entender com as canções de amor.
Que fique registrado: canções de amor não perdoam.
Houve quando um corpo se insinuou para a ousadia e dançou, horas e horas e horas seguidas, até não haver força nele que o mantivesse em movimento. Desabou ali, na vala-asilo dos inquietados pela intempérie e pela sofreguidão; dos enviuvados de medos religiosos e políticos; das armadilhas da esperança iludida. O mar abraçando reveses.
Melhor é ter esperança com parcimônia, para não se embriagar de bobagens nascidas para empacar jornadas.
Há mar que é dos olhos. Escoa em lamentos e alegrias que não cabem em palavras. Acontece de lavar a face do outro. Não raro, recria possibilidades soterradas sob infortúnios e a incapacidade de observar a si sem reservas. Nem sempre é espetáculo para espectadores, que dá angústia de assisti-lo. E até mesmo o personagem principal pode se sentir menos do que o menos que ele já encarou, ao mergulhar nesse mar.
É plural, de quem beija as mãos do passado ao se despedir das suas armadilhas, daquelas que reverberam ondas que afogam... aos poucos. Mar que umedece os lábios do tempo, salga sua língua, planta em seu abstrato corpo o desejo pelo amanhã.
Para constar: amanhã pode ser daqui a pouco.
Imagem: Miranda © John William Watherhouse
carladias.com
Comentários
Que BOM, Querida, q vc nao nos abandonou.
Beijos felizes
E que bom que acabamos assim, por aqui, como estamos há tantos anos. Beijos!