O ANDAMENTO DO TEMPO >> Carla Dias >>
Há o que já não fazemos, porque esgotamos a capacidade de nos dedicar ao feito. Há também o que abandonamos, nem sempre por vontade própria, quase sempre por conta dos acontecimentos que não temos como comandar.
Olhamos para a juventude com certa distância. Ainda a achamos atraente, a desejamos – metafisicamente – com certa elegância. Porém, concordamos que seria um fardo viver a eternidade, não é mesmo? As urgências, aquelas urgências que perdem o valor com o tempo. Tivemos de vivê-las para reconhecermos que a utilidade delas não é nos levar às conclusões, mas ao questionamento.
Levamos uma vida para entendermos que as perguntas, ainda que desprovidas de respostas, contam histórias. Mais do que isso, acontece de elas mudarem essas histórias.
Olhamos para a juventude com certa intimidade, quando se trata dos nossos afetos. Chegamos mesmo a nos emocionar com a forma como eles descobrem a vida. Como não observar o tempo acontecendo a eles e torcer para que o processo seja menos complexo quanto foi para nós? Porque pode acontecer de a complexidade não apenas desnortear, mas também doer, enfraquecer, desesperar. E se há algo que a vida nos ensinou é que sempre desejaremos mais leveza à vida dos que amamos.
Até chegarmos aqui, muito foi incluído nesse currículo existencial: nascimentos, abandonos, descobertas, perdas, conquistas e muitas canções, que nossa vida jamais seguiria inspirada se não fosse a música.
A partir de um momento, variando de acordo com o freguês, observar-se é mais complexo, e não apenas no espelho. Aceitar a efemeridade de quem somos não é das coisas mais fáceis, tampouco deleitáveis. Mas não vivemos apenas dos prazeres, certo? Nossas dores e tristezas nos acompanham e nos moldam e nos abraçam e nos sustentam e nos inspiram. As alegrias, idem, mas não com tamanho poder de nos fazer escutá-las. Felizes, acabamos distraídos das pequenas tragédias. Essas fugazes distrações não são somente bem-vindas, mas necessárias.
Precisamos de pausas.
Não vamos cair naqueles clichês que resumem o que não pode ser resumido. Envelhecer é aprendizado árduo, porque o processo chega com a necessidade do desapego, e não é por objetos que adoramos, dos quais não queremos nos desfazer. É por aquela pessoa que imaginávamos ser, sendo que, hoje, percebemos que aquelas eram identidades forjadas na espera pela conquista mais importante. Aquela conquista que nunca veio, como aquele evento especial no qual usaríamos roupas especiais que nunca saíram do guarda-roupa.
Envelhecemos, então. Sei que muitos dirão que ainda é cedo para falar a respeito, outros darão a sugestão de mantermos a máscara da juventude por mais algum tempo, até que seja impossível usá-la.
Não enxergamos outro caminho. Despir-se dessa máscara é o que temos feito, porque as outras opções em nada nos agrada. Talvez haja alguma beleza em se entender com essa versão de nós, que não se fia mais pela possibilidade de deslumbramentos vazios, pela forçada adequação, pela necessidade de se identificar com todos, exceto consigo mesmo. As outras identificações precisam da honestidade do querer.
A honestidade do querer é parecida com o tempo. Ela nos ajuda a compreender o que importa, o que de fato faz parte de quem somos.
As histórias de quem fomos convergem nesse ponto. Então, envelhecemos. Ainda somos os mesmos de antes, mas o antes já não nos toca mais como antigamente.
Imagem: Femme au miroir © Pablo Picasso
Comentários
Surtei de espanto.
Abraços,
Enio,
Bjs
Denise Odara
Odara
Denise, a alma é debochadora de tempo que passa. Ainda assim, alimenta-se do que ele ensina.
Zoraya, obrigada. Gentileza, sempre a gentileza sua me comove.
Maxi, obrigada. Maravilhosa é você.