BANALIDADES >> Sergio Geia
Deitado, meio
dormindo, me lembro da afta debaixo da língua. Achei que ela não iria pra
frente; foi. Levanto. Vou ao banheiro e pego um cotonete. Olho no espelho, ergo
a língua, começo a cutucar. Cutuco, cutuco, cutuco. Levo o cotonete mais a
fundo. Cutuco, cutuco, cutuco e encontro a danada. Viro o cotonete e, a ponta
ainda seca, encharco com Omcilon. Vou deitar com a boca cheia de pomada, o
estômago esquisito, um gosto de tempero pronto na boca. Na tevê, passa um
documentário legal sobre o Jards Macalé.
Uma vez ouvi
alguém dizer que homem não consegue organizar nem o bolso da calça. Na frente
da minha porta, vasculhando o meu bolso, a sacolinha do supermercado pesando
nas mãos, tento encontrar a chave. São várias chaves no bolso, uns papeizinhos,
um pen drive, um halls preto, um
clipe de papel. Me irrito profundamente. Acho que pouca coisa me irrita mais
que isso. Tiro um molho de chaves, cai um comprovante de débito no chão, o
halls também cai, pego outro molho de chaves, mudo ele de mão, até que depois
de tirar quase tudo, eu consigo pegar a chave da porta. Dou uma virada, tiro-a
da porta, volto pro bolso, puxo a maçaneta pra baixo e entro. Ou tento. A porta
não abre. Estava com duas voltas, o dedão do pé doendo.
Levanto, vou
ao banheiro, pego um cotonete. Cutuco, cutuco, cutuco. O tubo da pasta está de
cabeça pra baixo. Sonolento, a primeira impressão é de estranhamento. Depois, a
ficha cai. É a nova técnica para tubos quase vazios. Em pé, o creme fica
embaixo, você aperta, ele não sai. De cabeça pra baixo você resolve o problema.
Aperta, sai. A técnica é simples, mas funcional. Olho pro espelho. O cabelo
desgrenhado me força a tomar banho. Quando eu cortava à máquina não precisava.
Tá frio e desisto de caminhar. Mais uma vez. Sempre que isso acontece, me bate
uma melancolia. Na janela, um alvorecer lindo.
Enjoado de
hambúrguer industrializado, converso com o Julio, e decido criar o meu. Pego a
carne moída já descongelada e a divido em três. Ponho uma porção nas mãos e
começo a modelagem. Meio imberbe no processo, fabrico três bolotas disformes.
Tempero por fora com um temperinho pronto e jogo na panela. Aumento o óleo,
diminuo o fogo. Descubro que o sabor é bom, muito melhor que um Sadia, embora
tenha carregado no tempero. No quarto, vejo os sapatos enfileirados debaixo da
cama. Honestamente, não me incomodo. Deveria? A primeira faxineira que teve
aqui guardava tudo no guarda-roupa. Falei pra parar.
A amiga que
me ajuda na limpeza do apartamento vem. Me lembro dos produtos de limpeza que
ela me pediu e que esqueci de comprar. Vou a pé até o Extra que fica na avenida
de casa. No caminho, me arrependo de ter ido de havaianas. Tenho o segundo dedo
do pé encavalado sobre o dedão, isso nos dois pés, um pequeno defeito de
fabricação. A tira do chinelo se infiltra entre o dedão e segundo dedo, e vai
detonando os dois. Chego ao supermercado e ainda consigo manter a pose,
tentando esquecer o ménage que acontece entre a tira, o dedão e o segundo dedo.
A faxineira vem. Penso que tenho que separar as roupas pra lavar, algumas
camisas pra passar, anotar instruções, deixar o dinheiro debaixo da tartaruga.
Chego com o dedão doendo, e não encontro a chave da porta.
O cabelo
desgrenhado me força a tomar banho. Quando eu cortava à máquina não precisava. Lembro
que a resistência do meu Lorenzetti queimou. Vi um vídeo no YouTube outro dia e fui à luta. Trocar a resistência de um chuveiro é um ato
prosaico. Basta saber qual é o conector “a”, o conector “b” e o conector “c”.
No chuveiro, tem marcado as bases “a”, a “b” e a “c”. E só encaixar e dar uma
apertadinha usando um alicate. O problema é que não sou muito habilidoso com
essas coisas; além do mais, tenho que fazer a troca lá em cima mesmo, com o
chuveiro instalado; não quero retirá-lo, mexer com a parte elétrica. Meus dedos
são grossos, os espaços que tenho pra trabalhar são estreitos. Tá frio e
desisto de caminhar. Mais uma vez.
Entro
debaixo do edredom. Desejo descansar os dedos, o dedão detonado por um ménage com
a tira das sandálias e o segundo dedo. Ponho os óculos, pego o livro. Antes,
olho as anotações à mão, que encabeçam umas páginas. Faço assim: quando encontro
uma palavra bonita, escrevo na parte superior da página. Tem livros com muitas
palavras bonitas. Açular, por exemplo. Açular significa provocar, estimular,
excitar. Açular é uma palavra linda. A sensação é tenra, um céu todo feito de
rosa dúbio e vagaroso, outra lindeza que encontro. Não a sensação, que é minha
mesmo, mas o céu, que é do Raduan. E são muitas, mas nada que impeça esse mesmo
céu de escurecer, o corpo lasso acusando a semana. Fecho a janela, não sem antes
dar uma espiada nas plêiades, que descobri outro dia lendo um conto do Caio
Fernando Abreu. Apago a luz. Ligo a tevê. Passa um documentário legal sobre o
Jards Macalé. Deitado, meio dormindo, me lembro da afta debaixo da língua...
Comentários
Paulo Pereira