PASSEIO NOTURNO - 1a parte >> Zoraya Cesar
Estresse agudo, afirmou o médico, dando-me um ultimato: ou larga tudo e vai repousar ou a vida é que vai te largar e você repousará forçosamente – ad æternum.
As ruínas de uma construção que eu não soube identificar me fascinaram desde o primeiro instante. |
Pressionado por esse prognóstico terrível, decidi passar alguns dias num vilarejo isolado, de difícil acesso, no meio das montanhas. A natureza, ali, era extravagante. Imensa e profusamente verde de um lado, escarpada e desértica de outro. Da vila, viam-se, ao longe, restos de uma curiosa construção.
Os habitantes recalcitravam em vivenciar os confortos da vida moderna. O lugar vivia às custas de turistas eventuais e exportação de um artesanato peculiar, feito a partir de ossos e terra vermelha, que fazia sucesso no exterior. O comércio se resumia a uma mercearia que fazia as vezes de padaria e confeitaria; um barbeiro; um bar-restaurante e uma pensão. Só.
Nenhum canal de TV ou sinal de celular alcançava a região. A pouca energia que chegava fazia com que a luz, mesmo no interior dos ambientes, fosse baça e insuficiente à leitura. Tudo fechava - inclusive as pessoas em suas casas - assim que escurecia. Era, realmente, ideal para o descanso. Obriguei-me a deitar cedo, pois também não adiantava sair a passear. As luzes da rua eram desligadas às 20 horas e, se não houvesse lua cheia, a escuridão impedia que você enxergasse um passo adiante. Numa cidade de paralelepípedos irregulares e mal conservados, situada no alto de uma montanha, cercada de ribanceiras, um passeio noturno poderia ser fatal.
A não ser que você tivesse um guia.
Durante o café da manhã, perguntei à dona da pensão quem poderia me contar histórias pitorescas e folclóricas da região, guiar-me pelas trilhas e falar sobre as tais ruínas. Ela respondeu secamente, sem sequer olhar para mim:
- Procure o velho Sr. Vilkolakis. Ele passa o dia sentado ao sol no banco da praça. Mas, se fosse o senhor, sossegaria o facho depois do anoitecer – Não me importei com a rispidez dela, nem dei trela pro conselho sem sentido. Essa gente do interior é muito esquisita. E eu estava lá para descansar e largar dos estímulos incessantes da cidade, não para vegetar dentro de um quarto. Se estava em meio à natureza, aproveitaria para passear.
De longe, ele parecia uma estátua de pedra, não fosse a fumaça que saía de seu cachimbo. Aproximei-me por trás, sem que meus mocassins, tenho certeza, fizessem qualquer barulho na terra macia. Mas o homem levantou quase imperceptivelmente a cabeça e pareceu farejar o ar, me pressentindo.
- Boa tarde – disse, antes mesmo de me ver, a voz profunda e um tanto gutural, mas agradável, amigável, até – soube que você vinha me procurar.
Ele era impressionante. Baixo, não devia ter mais de 1,60 m, músculos robustos e fortes sob uma pele recoberta de profusos e hirsutos pelos cinza. Era velho, sem dúvida, a face pregueada e crestada pelo sol. A calvície passou longe do Sr. Vilkolakis (que nome estranho!): tinha fartos cabelos castanhos entremeados por largos fios brancos e enormes costeletas que lhe tomavam quase todo o rosto. Grandes dentes sobressaiam por entre os lábios marrons e um brilho intenso refulgia de seus olhos amarelados e sonolentos. O cheiro do fumo do cachimbo misturava-se a um outro, que não consegui identificar com exatidão, mas me pareceu agridoce, uma mistura de almíscar com amônia, não sei.
Conversamos longamente. Ele era um contador de histórias nato e desfiou uma série de causos da região, alguns, confesso, um pouco assustadores. Quando vi, já era hora de voltar, se eu quisesse chegar à pensão antes das 20 horas. Ao nos despedirmos, pedi que me levasse às ruínas, à noite (eu queria descansar, é certo, mas um pouco de aventura não me faria mal. E eu detesto deitar cedo).
- À noite? – ele fungou e ficou parado, quase imóvel, os olhos semicerrados. Parecia tão absorto que receei que ele tivesse caído num sono senil.
As trilhas, mesmo sob a luz da lua cheia, podem ser perigosas, avisou-me o Sr. Vilkolakis. |
- Pode ser perigoso. Valões. Corredeiras. E coisas estranhas e imprevisíveis acontecem à noite nessas trilhas. Coisas do Além...
Pus-me a rir, com a arrogante superioridade dos citadinos. Eu, homem de negócios, acostumado a dar nó em pingo d’água, ia lá acreditar em crendices e superstições? Insisti na aventura.
Então, ele aquiesceu, acrescentando que aquela noite seria de plenilúnio, ou seja, ideal para percorrer trilhas. De repente, sorriu, deixando à mostra seus dentes cróceos. Disse estar muito contente, pois era a primeira vez, em incontáveis anos, que um turista lhe pedia para ir às ruínas durante a noite.
- É necessário que me peçam, você sabe, não é permitido que eu ofereça. É preciso obedecer às regras. - Não entendi muito bem, mas deixei pra lá. Essa gente do interior é muito esquisita.
Convidei-o a jantar comigo, mas ele agradeceu e declinou, alegando que costumava sentir fome mais tarde.
O Sr. Vilkolakis chegou pontualmente à hora combinada.
Continua dia 24 de março a 2ª e última parte.
Foto ruínas: David Brooks in Unsplash
Foto floresta sob a luz da lua: Tame66 in Pixabay
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Comentários
E o que fazer com a curiosidade? E a especulação sobre o que acontecerá com esse personagem que é 8 ou 80?
Ah, Zoraya... Sou escorpiana. Esperar me endoidece em vários graus.
Beijos!
Anônimo 1 - Esse é um blog família! E pq o coitado do personagem principal viraria pedra? Se bem que, na vida, tudo pode acontecer... veremos.
Analu - que bom! espero que o final atenda às expectativas.
Clarisse- nome de vampiro com beca de lobisomem! ótima ideia! um transgênero mítico ah-ha!
Ana - ainda não sabemos qual é a do velhote, mas cuidado, esses velhinhos e velhinhas nunca são tão inocentes quanto parecem
Carla - haha, eu tenho de manter minha fama de má! E não se avexe não que sou sagitariana. meu segundo nome é curiosidade kkkk
Anônimo 2 - pois é! eu tb fiquei um pouco encafifada com um sujeito que tem dentes cróceos e sentirá fome mais tarde, ai, ai ai
Obrigada a todos!