CORRENTES >> Carla Dias >>
Durante anos, vem se dedicando a não quebrar correntes. Não importa o ganho, mas evitar a consequência: se não passar adiante, para tantos amigos, vai acontecer algo de terrível a você; reze tantas Ave-Marias e tantas Salve Rainha, senão você passará por longos tantos anos de miséria, e por aí seguia.
Quase todas as correntes que recebe são religiosas. As religiosas, ela nunca pensou em quebrar, que tem horror à ideia de Deus a achar espiritualmente preguiçosa. Já as que parecem mais uma ameaça do que corrente: “Alguém ama você e lhe mandou um coração. Compartilhe com quem você ama, caso contrário, o seu coração se transformará em um deserto e nunca mais dará flores.”, essas ela às vezes pensa em deixar passar, que se sente esgotada por sua vida ter se tornado uma série de rendições às correntes. Porém, antes que o prazo para o repasse acabe, lá está ela, encaminhando a mensagem para as cinco pessoas de sua lista de contatos: pai, mãe, irmã e dois irmãos. Quando precisa de mais de cinco destinatários, seleciona e-mails nas revistas comerciais do bairro.
Os familiares já pediram para que parasse com isso, que correntes são bobagens criadas por quem não tem mais o que fazer a não ser encher caixa postal e preencher timeline de rede social alheia. Ou que, na pior, que ela arrume alguns amigos, com os quais eles possam dividir o fardo que é ser alvo da incapacidade dela de quebrar correntes.
Na verdade, ela quebrou uma, certa vez. Há muitos anos, deixaram um envelope na caixa de correio de sua casa. Ela era o destinatário e não havia remetente. Ela abriu e leu o texto datilografado duas vezes, como sugerido por meio de uma observação, escrita à mão, no rodapé da folha de papel, onde também se lia a instrução para que o recebedor da mensagem fizesse cinco cópias datilografadas e deixasse na caixa postal de cinco casas de sua rua.
Ela realmente gostou do que estava escrito. Sendo assim, decidiu que seria bom compartilhar.
Na época, ela já adorava uma modernidade. Então, por que não fazer cinco cópias Xerox, em vez de gastar tempo e paciência na máquina de escrever do irmão mais velho? Datilografar já era fazer praticamente obsoleto. Seu irmão, um colecionador excêntrico, era dos poucos que ainda recorria ao instrumento para registrar seus projetos.
Ela imaginou que seria interessante oferecer um pouco do que continha naquele papel às pessoas. Era poesia, por mais que parecesse oração. Ela gostava de poesia, e achou boa a ideia de espalhá-la por aí. Dois dias depois, ela fez as cópias e se comprometeu com ela mesma a entregá-las no dia seguinte. Porém, ignorou outra observação escrita à mão no rodapé: as cópias deveriam ser entregues em até 24 horas, após o recebimento, evitando assim, que um evento infeliz ocorresse... “Evento infeliz” estava sublinhado. Ela achou aquilo uma grande bobagem.
No dia seguinte, sua vida mudou completamente. Um evento infeliz aconteceu, o que a levou a perder um querido amigo de infância. Foi àquela carta sem remetente que ela se agarrou. A culpa, que lhe cabia melhor do que a dor da perda, tornou-se sua âncora. Jurou a si que nunca mais quebraria uma corrente.
Sua dedicação a não quebrar correntes afastou os amigos e interfere profundamente em seu relacionamento com seus familiares. Mas nela vive esse medo lancinante de que, se quebrar a corrente, outra tragédia se agarrará a um de seus poucos afetos. Prefere não arriscar.
Ela foge de possíveis veículos que promovam o recebimento de correntes. Ainda assim, elas acabam chegando até ela. A partir daí, cumpri-las é uma necessidade. Mudou-se para um pequeno apartamento na cidade, que não conseguia mais lidar com a rotina de conselhos de seus pais a respeito de possíveis tratamentos para a compulsão dela, nem mesmo com a zombaria dos irmãos. Enquadrou a primeira corrente recebida e pendurou na sala, que é para não se esquecer de que precisa seguir todos os passos das correntes que receber.
Atende a porta e dá de cara com a irmã dele. Há muito tempo não se encontravam. Dela também foi amiga, naquele antigamente, quando quebrar correntes significava nada para ela.
Elas tomaram chá e então conversaram sobre trabalho. Não tardou, a irmã começou a falar sobre suas lembranças a respeito do irmão. Choraram juntas, maldisseram o destino e questionaram a felicidade.
Antes de sair, a irmã vê o quadro na parede e se aproxima para ler melhor o escrito. Creditava à perda do melhor amigo o afastamento da outra, assim como a origem de seu comportamento excêntrico. Gargalha baixinho, sob a mira curiosa da cumpridora de correntes. Conta a ela, a voz rascante, que seu irmão escrevera aquele poema, no dia em que decidira que poeta seria sua profissão. Ele achou que sua melhor amiga se sentiria orgulhosa de sua escolha. Ele usou a máquina de escrever de seu avô, porque sabia que ela achava máquinas de escrever obsoletas, mas superaria isso para ler um poema. E que, talvez, ela pudesse se surpreender com a primeira obra dele. Mas então, ele decidiu mantê-lo na gaveta, até ter a coragem necessária para mostrá-lo à amiga.
Foi ela, a irmã, que achou aquilo de esperar uma grande bobagem. Então, teve a ideia de mostrá-lo de uma forma inusitada. Assim, além de ele poder dizer à amiga que era o autor do poema somente se ela gostasse da obra, teria seu primeiro feito distribuído a outros leitores.
A irmã colocou o poema em um envelope, o nome da amiga no remetente. Colocou o envelope na caixa de correio dela, mas não sem antes cometer uma traquinagem. É dela a letra escrita à mão. É dela a autoria de uma corrente que nunca existiu.
Fechou a porta, apagou a luz e se sentou no sofá. No escuro, espiou suas lembranças. Ainda escuta, em sua cabeça, a voz dele. Ela a reconhece e sente falta de escutá-la a contar novidades.
Foi justamente o quanto aquele poema a levava a se lembrar dele que a fez seguir esse rumo. O que ela encarou como presságio, não passava de uma travessura. Repetiu isso até que a compreensão fosse possível. Até que entendesse que a tragédia não havia sido praticada por um destino que se ofendeu pela incapacidade dela de atender a seu pedido, mas pela interferência de uma pessoa que acreditava fazer o melhor para ela e para o irmão.
Respirou fundo e quebrou a corrente ao lidar com seu coração partido.
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