LEITURAS DE OUTONO E INVERNO >> André Ferrer
O calorzinho na
superfície da lã que vestimos. Ao nosso redor, os vapores da terra, que se
desprendem e sobem à medida que o sol aparece. É aconchegante uma caneca de
café, em casa, depois da caminhada. Sempre que posso, capricho no ritual. Raros
tesouros acontecem na vida e só podem, mesmo, acontecer de um jeito. Carecem da
época certa para acontecer.
Um ianque na Itália sitiada pelos austríacos. Uma odisseia nas ruas de Dublin. Um médico reduzido a faxineiro. Hemingway. James Joyce. Kundera. Livros que li entre abril e agosto de anos diversos.
Um ianque na Itália sitiada pelos austríacos. Uma odisseia nas ruas de Dublin. Um médico reduzido a faxineiro. Hemingway. James Joyce. Kundera. Livros que li entre abril e agosto de anos diversos.
Adeus às armas tinha o
amargo do café e a saturação doce do leite condensado. Antes de inspecionar
ambulâncias, o herói, tenente Frederic Henry, bebia a mistura. Os canhões, à
distância, entre o Piave e as montanhas ao redor de Gorizia, pareciam adiar a
ação e o drama inevitáveis. No romance e na vida, doce e amargo tratariam de
colocar homens, garotos e vaidades no seu devido lugar.
Depois, conheci Leopold
Bloom, que combinava com algumas faixas de Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club
Band. Naquele outono, eu descobri a fragilidade de elementos consolidados.
Tanto na literatura quanto na música, surgiram trincos nos alicerces
aristotélicos que eu conhecia. Em 1994, eu caminhava sobre os dormentes e a o
aço ainda úmidos de manhãzinha. Pouco importava o tetracampeonato. Eu caminhava
debaixo de um sol mortiço antes de voltar para casa e para Bloom e para os
Beatles e para o dia hermético e interminável. Antes, contudo, eu apreciava o
vapor enquanto as pedras, a madeira e os trilhos da ferrovia se libertavam do
choro da madrugada.
Por que Milan Kundera é
o mais machadiano de todos os expatriados? Ora, por causa do gosto ensaístico e
irônico da sua arte. No outro ano, comecei a ler Kundera pelos Amores risíveis.
Em março, eu devorei A brincadeira bem como A imortalidade. Sim, novamente, foi
em julho que conheci outra obra exemplar: A insustentável leveza do ser. Eu
morava em Santa Catarina. O mar e as ressacas. Um banco a flutuar nas águas
turvas e invadidas e proibidas e sitiadas. Um Escobar cíclico eternamente
afogado numa praia.
Ernest Hemingway. James
Joyce. Milan Kundera. Expatriados e geniais. Apesar de toda a expatriação,
jamais agiram como renegados. Apesar de toda expatriação, que a vida inteira a
mim também perseguiu, eu precisava ser mediano. Sim, a despeito da falta de
pátria e de patrícios, pelo menos mediano.
Tanta impressão de que
não pertencia a este mundo me dominava naqueles anos de formação. Com
estoicismo e sem autopiedade. Cavando masmorras à hipocrisia, eu precisava
voltar para casa e me contentar com a lembrança da névoa, em plena alvorada,
pairando sobre a ferrovia e o vale.
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