MUNDO VULGAR
>> André Ferrer
Em 1986, assisti ao “De
volta para o futuro” no cinema. Tinha então 13 anos e já se instalara em mim
aquela estranha nostalgia relacionada a uma época não vivida que, no meu caso,
era os anos de 1950 e 1960.
Em 1987, eu estava na
oitava série (na época, o último ano do fundamental) e a minha turma precisava
ganhar algum dinheiro para a viagem de formatura. Lembro-me do comércio de
bolos e doces no intervalo e, também, de um hilário bazar de roupas usadas que
montamos numa praça da cidade. Lembro-me, especialmente, das sessões em VHS que
promovíamos na escola. “De volta para o futuro” foi uma das principais
atrações.
Outro dia, eu trocava
lembranças com um amigo daqueles tempos via Facebook
e, algumas horas mais tarde, enquanto eu aguardava a fornada das 15 horas na
padaria do bairro, comecei a ter uma ideia intrigante.
Na época da oitava
série, a minha mãe fazia o bolo de laranja campeão de vendas nos intervalos. A
cobertura era uma mistura simples de açúcar de confeiteiro e suco de laranja. Depois
de seca, essa calda se transformava numa casca finíssima e quebradiça. O efeito
azedinho-doce atraía os fregueses.
— Meia dúzia?
— O que foi? — perguntei
atordoado de volta para o presente. — Ah sim! Meia dúzia de pães, por favor.
Enquanto pagava o dono da padaria, eu ainda observei a textura de um pedaço de bolo exposto atrás do vidro.
— Embrulhe um desses
aqui. Tudo bem? É de laranja?
Não era. Mesmo assim,
levei um pedaço de bolo para casa e também a esperança de que uma mordida
tivesse um efeito ainda maior. Equivalente, quem sabe, ao de uma arrancada no famoso
DeLorean movido a plutônio. Não teve.
Descobri que a imagem daquela fatia de bolo era muito mais eficiente como
gatilho de recordações. Um bolo de coco, definitivamente, não conseguia
descarregar aquela energia pessoal dentro da minha cabeça. Duas ou três
mordidas depois, engoli e olhei o que restava do bolo no prato. Sequer o
aspecto, agora, fazia-me viajar. O delicado mecanismo envolvido estava
quebrado.
A ideia que me intriga
ocorreu logo a seguir.
Há dois tipos de
gatilhos capazes de desencadear viagens no tempo: sensações públicas e
sensações privadas. Quero crer na ideia de que as sensações privadas (um gosto
de laranja, um cheiro de mofo, a visão de uma nuvem contra o azul celeste)
ainda se reproduzam e afetem a Geração Y que é tão mais ligada às novas tecnologias
e à realidade virtual do que as gerações anteriores.
A geração dos meus avós
e dos meus pais recorda determinadas épocas da vida baseada em datas marcantes
(no dia em que Getúlio se matou, por exemplo, e a notícia ecoou no rádio, eu
estava neste ou naquele local), mas também nas memórias olfativas, visuais,
táteis e auditivas (embaixo daquela mesa existia um cheiro perdido de Manteiga
Aviação). Ora, se a minha geração já desenvolveu uma inquestionável dependência
da Indústria Cultural, o que ocorrerá com a memória das futuras gerações? O
ponto crítico, a meu ver, reside no uso intenso da tecnologia, o que filtra a
vivência, padroniza e despersonaliza as sensações. Um mecanismo tão delicado! Em termos bem simples: gatilhos
vulgares para lembranças vulgares. Num futuro próximo, será que teremos um
mundo ainda mais vulgar?
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