ALÉM DAS BARRICADAS >> André Ferrer
Lá de cima, Jonathan via
duzentas pessoas e o camburão de vez em quando.
Tinha terminado Os Miseráveis
no final do dia, livro que a mãe trouxera do emprego. A patroa, uma viúva
remediada e bondosa, desfalcava o armário de comida e a biblioteca de vez em
quando muito obrigada e o camburão lá embaixo, de novo, a dispersar gente como
água em óleo.
Tinha gostado da história.
Tinha gostado de saber mais a respeito das barricadas urbanas que o pai tanto
evocara nos dias da invasão do Versailles,
o prédio onde agora ele morava com a mãe funcionária da viúva remediada e
bondosa que aceitava blasé a nobre causa dos sem-lar. O pai, ora perdido, fora
do movimento pela ocupação dos imóveis vazios no centro. Lera muitos livros e
uma bolha de gente, na escuridão da rua, encontrou a outra e cresceu.
Lá de cima, os cachimbos acesos
brilhavam contra o asfalto negro nos pontos onde as luzes dos postes nunca
chegavam. As pessoas eram burras. Toda aquela força e nenhuma barricada que
valesse a pena e o pai tragado por uma pedreira tão letrado e inteligente mal
desfrutara as conquistas da revolução. A mãe heroína e praticamente viúva
chegava tarde dos cuidados à viúva de fato remediada e bondosa e o pai,
cachimbo na mão, a jogar fora ideais e prêmios.
Jonathan gostava de ler
os livros que o pai deixara numa caixa de tomates no dia do adeus porque vocês
não merecem o dia mais ou menos frio sem o rádio vendido e fumado lá embaixo onde a luz do poste nunca chegava e o camburão. De novo, a dispersar gente
como óleo em água.
O pai, alguma vez naquela vida jogada fora e
tragada pela pedreira, teria lido Victor Hugo? Na caixa de tomates do Mercado
Municipal, havia obras políticas e nenhum romance e, de repente, Jonathan
descobrira um no presente da viúva patroa da mãe que apesar de comovida pela
causa perguntava se aquele Versailles
era o mesmo da sua comadre Albuquerque, a mais nova, Bea, Bia, Beatriz, a mais
nova da carteira da segunda fila no Sacré
Coeur quando se conheceram. Versailles:
ah quantos festins! A mãe sorria o espanador enquanto a velha iniciava uma
história anterior ao baile de debutantes da prima Lívia Tavares de Camargo no
ano que o Zeppelin ardeu.
Avistou a mãe. Queria vê-los ambos felizes deste
lado das barricadas e o camburão a dobrar a esquina e a bolha novamente refeita
que a mãe penetrou corajosa e decidida como fazia todo início de noite a fim de
alimentar o ex-revolucionário.
Por que a polícia vem, passa devagarzinho,
dispersa os mortos-vivos e só?
Avistou a mãe sob a luz de um
poste. Uma pietà inócua e valente. Os
pedaços do pai a estenderem os braços de cadáver. Tinha certeza, naquele
momento, que a mãe sugeria: vamos subir, o Versailles
é nosso, finalmente, por mais que os Albuquerque e Tavares de Camargo ainda nos
assombrem... é nosso, meu velho!
Quando chegava ao décimo andar
do edifício desapropriado, a mãe cumprimentava os vizinhos e lamentava a
derrota do sans-culotte para um dos
parceiros de luta.
— Aceitou a comida?
— Hoje, aceitou. Nada, meu
amigo, de querer voltar para casa.
— Uma pena, companheira. Nosso
movimento, infelizmente, nada pode fazer por alguém que desistiu da vida!
No ano que o Zeppelin ardeu, os avós de Jonathan
viviam no campo. Eram proprietários de charruas, terneiros e cafezais e a
realeza no Versailles, em pleno
centro econômico do país, festejava o café do Brasil e o camburão contra o
asfalto noturno, a dispersar duzentos mortos-vivos lá embaixo.
Comentários
Tens a escrita sagaz e sincera. Orgulho de ler.