UM CONTO SOBRE PLANOS FRUSTRADOS >> Sergio Geia



Ele sonhava assim: ...
Não. Sonhava não. Mais planejava do que sonhava. Pode parecer bobagem, mas não é, e há sim uma grande diferença. O sonho tem feições obscuras. Não. Nada disso. Quanta bobagem. Não é isso o que eu quero dizer, que sonhos têm feições obscuras, esse tom que você pensou, exatamente porque eles não têm. Tipo as estantes de livros da minha casa. Sim, os sonhos são das cores de minhas duas estantes que tenho aqui sobre a televisão, cheias de livros coloridos. Sonhos são leves, coloridos, balão voando no céu. Melhor assim, nada de “feições obscuras”. Ai meu anjo, perdoe-me; acho que estou um pouco confuso hoje. Talvez esteja precisando de um gole de uísque. Vamos reformular. Sonhos têm uma feição, digamos, Everest, algo difícil de alcançar, era isso o que eu queria dizer. Sim, muitos alcançam, quantos alpinistas não chegam lá, mas quantos não ficam pelo caminho? Sonhos são desejos a perseguir, lugar que se quer alcançar, e que exige de você. Sonhos iluminam a vida, e não era isso o que eu queria contar; portanto, o sonho, diferente de vida, não cabia aqui, daí toda essa explicação confusa.
Então ele não sonhava. Vamos dizer: ele planejava. Mas antes de dizer o que ele planejava, digo para você que não vou interromper mais, que já está ficando chato. O personagem é ele, não eu. E não vou falar tentando explicar as coisas, visto que (bem juridiquês) quebra totalmente o tesão, faz a história parecer mais uma crônica dessas que eu publico, que você está acostumado a ler, e tudo o que eu não quero é que você se lembre de mim hoje, porque quero que a leitura seja mais conto que crônica, mais ficção que real, água límpida com aquele sonzinho suave que desce a montanha e acalma, embora já ache que o que vai sair de tudo isso é muito menos que um conto, muito menos que uma crônica, um cruzamento mal-acabado dos dois, uma espécie de transmutação literária, bem confuso mesmo.
Então...
Ele planejava assim:
Numa dessas noites, de preferência numa noite fria, ele planejava tirar do armário o Clos de Fous que havia ganhado de uma amiga no dia de seu aniversário. Planejava vestir uma roupa quente — qualquer uma, não iria receber ninguém —, acender incenso, um cigarro, e antes de ouvi-lo, planejava introduzir o momento relax com um conto de Borges, ou de Pirandello, nesse caso não havia decidido, mas não importava, queria apenas entrar no clima, saborear as palavras, a bebida, o cigarro, sem pressa, saborear lentamente o momento especial.
Na última semana, o tempo esfriara. Depois de dias de inverno quente, a temperatura em algumas manhãs chegara à casa dos 8 graus, tornou-se um desespero tomar banho num chuveiro que não esquenta como o seu, até os encontros semanais com Dáfine, que o faziam despender uma boa quantia mensal por elevados interlúdios sexuais, rarearam por causa do frio, do resfriado, da tosse; mas, ainda assim, ainda que o frio trouxesse essas e outras adversidades, ele o preferia, principalmente porque no frio conseguia dormir bem, coisa que não fazia quando as temperaturas batiam o ápice no famigerado verão dos trópicos.
Mas enfim, o inverno chegara. E, pelo correio, também o disco. Foi outro dia. Quando comprava livros pela internet, um novo Ian McEwan, “Onde andará Dulce Veiga”, do Caio, viu a chamada e não teve dúvidas: lançou para dentro de seu carrinho o “Caravanas”, coisa que já devia ter feito há bastante tempo. Desde que chegara ele planejava o ritual. Sim, ouvir discos para ele tornou-se um ritual. E agora, com o frio, o vinho, planejava degustar daquelas preciosidades a seu modo, sem pressa, como fazia com Dáfine, claro, quando ela o permitia, e não exigia, ainda que indiretamente, um gozo rápido para, talvez, correr atrás de outro cliente.
Mas andava cheio de compromissos. Cerveja com amigos numa noite, o lançamento de um livro de uma amiga, a série da HBO que o estava consumindo, (aliás, nunca pensara que ficaria tão escravo dela), cinema, às vezes preguiça mesmo, eram semanas que procurava encontrar um dia, um humilde dia, para vestir sua roupa mais quente, para abrir o Clos de Fous, acender o incenso, depois o cigarro, ler Borges ou Pirandello, e aí sim, colocar o CD no aparelho, pegar o encarte com as letras, e ouvir, ouvir, ouvir, uma, duas, três vezes cada música, degustar o sentido das frases, a história empurrada (e Caravanas tinha dezenas delas).
E planejava que mais uma vez um disco assim iria surpreendê-lo. Assim foi com o outro. “Sem você”, por exemplo. Ela talvez o tenha feito mudar a sua vida, o tempo todo seu, ir ao futebol, ao museu. “Nina” o fez sonhar, e quantas não foram as vezes que bebeu vinho sonhando? “Querido Diário” o remeteu ao Rio, às coisas da cidade grande. Buscando a delicadeza confessional, o pequeno detalhe, a frase solta, perdida, que dizia muito. Alimentava o sonho, ou planos, diariamente, pensava na roupa quente, no frio entrando pela janela, o aquecimento com o Clos de Fous, Borges, as melodias sofisticadas penetrando suavemente, ganhando vida, enchendo-o de emoção.
Mas não foi nada disso.
Numa tarde de sol, temperatura superando os trinta, sentado na frente da tevê vendo uma morosa partida de futebol, comendo pipocas e tomando coca, ele, e até hoje não sabe a razão, abandonou sem qualquer remorso os planos, o ritual de audição tão ansiosamente planejado, apagou a tevê, encheu o copo duplo de coca e gelo, nem pensou em Borges ou Pirandello, de supetão enfiou o CD no aparelho, nem quis pegar o encarte. Ouviu “Caravanas” de enfiada, uma vez, gostou, mas tão logo terminou a última música, desligou o aparelho, ligou novamente a tevê, ajustou na HBO, já sentindo o coração palpitar com o início de outro capítulo de GoT.


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