COPO VAZIO >> Sergio Geia
Na cozinha ainda pálida do lilás da
manhã, sobre uma pia molhada, ladeando uma xícara com água, jaz um copo de
uísque da noite anterior, sujo, vazio. Respiro fundo, escapa um sorriso. Saio
de casa contente levando comigo “O crime do Padre Amaro”, presente para a
Chiara. Outro dia falei dele pra ela, incentivei a leitura, falei dos banhos de
mar como medida de tempo, até brincamos em Ubatuba contando nossos banhos de
mar; disse que o de casa tinha letras miúdas, uma sacanagem, que iria comprar
um que fosse mais decente. Comprei. Dou de presente. Ela adora.
“O crime do Padre Amaro”... Me
inspirou, escrevi “Confidências”. Houve outro na mesma linha, “O Seminarista”,
de Bernardo Guimarães, leituras que me deram fôlego para pensar no arcabouço de
história de Antonio e Liane.
Mas havia um copo vazio sobre a pia
molhada da cozinha, era o que eu dizia, e você vai entender o que aconteceu.
Aliás, você deve pensar: mas o que pode
vir de um copo vazio? Como deve ter pensado também: que título mais chinfrim!
Pois também penso, mas não me vem outro à cabeça que se encaixe melhor. Fica
então “Copo vazio”, embora copo vazio não diga nada. Mas eu digo. Digo que tinha
acabado de receber pelos correios “As You
Were”, do Liam Gallaguer — começando a história, agora você vai entender —,
e estava doido de vontade de ouvir. Doido. Já ouviu? Pois saí do banho,
coloquei o CD no som, estiquei as pernas, fui bebericar meu uisquinho. Baratotal:
chegar em casa, dosezinha de uísque no copo, música, música, música.
Eu já tinha lido que o álbum do Liam, o
vocalista marrento do Oasis, era muito bom, que tinha vendido mais que todos os
álbuns que o Noel, outro líder do Oasis, tinha produzido depois do fim da banda,
que era o que mais se aproximava daquele som anos-90, mas renovado, oxigenado,
repaginado, com influências até dos Beatles. E o disco é ótimo! Adorei tudo,
tudo. Wall Of Glass, Bold, porque está tudo bem, tudo bem
agora, Greedy Soul, For what it’s Worth,
só para constar. As músicas fazem bem ao ouvido.
Já disse certa vez que não sei onde
estava quando Oasis estourou em 90/ 2000; vai ver eu me desesperava. Pena.
Perdi a onda. Perco a onda sempre, mas adoro descobrir coisas velhas, filmes
velhos, livros, músicas. Outro dia descobri Belchior cantando “A palo seco”,
lembra? “Se você vier me perguntar por onde andei, no tempo em que você sonhava.
De olhos abertos eu lhe direi, amigo, eu me desesperava. Sei que assim falando
pensas que esse desespero é moda em 73, mas ando meio descontente,
desesperadamente eu grito em português.” A gravação original de 74 é uma
beleza, mas se você a quer oxigenada, veja Los Hermanos , aliás, ambos se
apresentaram, Belchior e Los Hermanos, no Altas Horas.
Álbum ouvido, curtido, sensação
delirante, tratei de comer alguma coisa e me ligar em “O Outro lado do
Paraíso”, essa novela que anda pegando fogo. Pois fico nesse revezamento cruel:
“O Outro Lado” e “Suits”, novela e “Suits”. “Suits” é a série da Netflix que trata do advogado-não-advogado
gênio, Mike Ross, que milita nos Tribunais sem ter frequentado uma
universidade.
Pois foi antes do apagar das luzes.
Bebendo água na cozinha, me deparei com um pobrezinho de um bebê-lagartixa no
copo vazio de uísque. Como não se mexia, deduzi que tinha bebido um pouco do
que restava do líquido precioso. Ou estava embriagado o bebê, tadinho, ou a
bebida o tinha levado a óbito, cruzes! Deixei lá. Fui dormir torcendo para que
no dia seguinte o copo estivesse vazio, o que, na minha humilde concepção,
significaria que o coitadinho tinha se recuperado da bebedeira e estava de
volta à batalha da vida.
Comentários
(Mas sempre acho que os Gallagher são overrated...).