ATRAVESSE... >> Carla Dias >>
Noite passada, voltando para casa, esperando o semáforo mudar de cor e me permitir atravessar.
Avistei aquele homem no meio da avenida. Desligada que sou - porque enquanto caminho até em casa, minha mente toma conta de mim e relembro, reinvento, crio e desejo o que não me cabe desejar - e acostumada ao furor das buzinas, de quando as pessoas estão ansiosas para voltar aos seus lares, bares ou arredores, não percebi antes que havia confusão ali.
Sinal verde, atravessei a primeira pista. Na segunda, as pessoas se aproximavam do homem e ele as afastava com um gesto brusco. Na calçada, muitas pessoas observavam e comentavam sobre o que entendi ao alcançar o outro lado e o sinal abrir para os carros.
O homem estava na metade do seu trajeto. Caminhava na faixa de pedestres. Um problema físico o condicionava a dar passos muito miúdos. Mas muito miúdos mesmo. Ele atravancou a passagem dos carros, colocando-se ali, diante do furor de atrapalhar o ritmo, o horário, a pressa do outro.
As buzinas enlouquecidas, os gritos: saí daí!
Houve quem se atravesse a bancar a bola de boliche desviando dos pinos, passando pelo homem a quase relar em seu corpo meio torto. Definitivamente, limitado. Claramente, um desafio para ele.
O atendente da farmácia de esquina saiu de seu posto e foi até o homem. Quem sabe uma roupa branca e um tom ligado à saúde pudesse ser menos ofensivo. Mas não foi assim. O homem balançou os braços, nervoso, distanciando o gentil moço da farmácia, que estava realmente compadecido por ele.
Pensaram que ele estava louco.
Pensei: o corpo... O homem está desafiando as limitações de seu corpo. É busca por certo conforto que a realização de uma tarefa pode oferecer.
Plateia a postos, fui caminhando em direção a minha casa, mas muito inquieta com as buzinas e os gritos.
Saí daí! Vai morrer! Idiota!
Olhei para trás e me dei conta de que o homem dera dois, no máximo três passos miúdos, miúdos. Prestei mais atenção: cada gesto que ele fazia era truncado. Seu caminhar era uma coreografia dolorosa, de movimentos minimalistas, apesar do desejo escancarado dele de se livrar das correntes das suas limitações e se esticar todo.
Agoniei-me ainda mais. Não consegui me juntar aos espectadores, até o final da cena. Demorou para que o homem atravessasse a avenida, porque eu escutava as buzinas enlouquecidas e os gritos dos motoristas, enquanto comprava laranjas no supermercado. Ele ainda estava nessa travessia, quando paguei pela minha compra.
Caminhei até em casa, o coração pesado. Estava claro para mim que aquele homem saiu da casa dele com o objetivo de encarar suas limitações e mandá-las plantar batatas. Realizar um desejo, que também era mágoa, porque quem não quer ter o direito de atravessar a avenida no tempo que o sinal verde oferece? Por conta? É simples, é básico e vivemos a nos esquecer do valor do que é tão nosso, que nem imaginamos como seria não ter isso.
Aquele homem tinha ciência disso.
Sim, o homem atrapalhou o trânsito, e havia muitas pessoas atrasadas para continuar com suas vidas. Eles as atrapalhou. Ele e seus passos miúdos, mas miúdos mesmo. Só que tem dias em que atravessar uma avenida é tarefa árdua, requer mais do que a necessidade ou o desejo de fazê-lo.
O homem atravessou a avenida, sem a ajuda de um alguém que fosse. Eu já estava em casa, quando ele atravessou a linha de chegada. Escutei as buzinas e os gritos silenciarem, assim que entrei no apartamento.
A vida é mesmo frágil, e alguns de nós são fortes, de força que faz com que atravessemos avenidas, apesar dos gritos e xingamentos.
Onde já se viu? Catarse alheia a atrapalhar o trânsito.
E não consigo tirá-lo da minha cabeça: passos miúdos, corpo tremendo, cara feia para afastar compadecidos que tendem a atrapalhar com sua compaixão amansando o que tem direito a ser raiva, ainda que por algum tempo apenas.
A falta de palavras berrando: encontro vocês do outro lado da avenida!
Imagem: The Dinky Bird © Maxfield Parrish
carladias.com
Comentários
Bela crônica. :)
Enio
Analu, concordo com você. Foi triste de ver, sabe? A pressa pra cuidar de si que vai longe demais e não respeita o outro. Beijo.
Enio, ela é frágil mesmo. Nós também. Beijo.