O APRENDIZ - 1a parte >> Zoraya Cesar
A idade era indefinível; o sexo, também. Se olhos humanos conseguissem vê-lo, porém, diriam tratar-se de um adolescente. Um adolescente de beleza etérea e compridos cabelos vermelhos.
Corria, o aspecto sisudo e compenetrado incondizente com alguém tão jovem. Parecia um efebo ateniense recém-saído do ginásio. Usava túnica branca e, nos pés descalços, viam-se pequenas asas, inertes e ainda inúteis. Não levava qualquer espécie de arma; apenas, colado à cintura, algo que parecia uma bola de gude transparente, por onde se viam fumaças e nuvens em constante movimento; a esfera vibrava e tremia de vez em quando, reverberando no corpo astral do jovem. Nesses momentos, ele passava sua fina mão sobre ela, acalmando-a.
A Esfera. A Esfera do Longínquo Dia, que deveria ser entregue diretamente nas mãos do Guardião das Magias Azuis.
Não era, decerto, sua primeira missão. Mas era, sem dúvida, a mais importante até então. Uma missão crucial para uma das Grandes Batalhas do Universo Estendido sobre a Terra debaixo do Céu, uma missão que, se bem sucedida, faria com que suas asas podais crescessem, permitindo o voo. E seu cabelo encurtaria, significando que o jovem aprendiz subira na hierarquia. Novas e mais arriscadas missões lhe seriam dadas. E, mais importante que tudo, como seu Mestre-Treinador lhe ensinara: significaria que ele voltara vivo - essa, sempre, a mais importante de todas as missões.
De repente, ele parou. Chegara ao final da Zona de Proteção Efêmera, na fronteira do Areal da Morte Infindável.
A partir dali, não haveria como retroceder, e ele estaria, definitivamente, por conta própria. Ele e a Esfera; ele e sua Missão. Hesitou. Dizer que o jovem Aprendiz não se sentiu inseguro seria mentira. Não podia, no entanto, demorar-se muito por ali. A Zona de Proteção Efêmera não tinha esse nome à toa. Seu escudo energético abria e fechava subitamente, fazendo com que, a qualquer momento, peregrinos, caçadores, guerreiros, quem quer que ali parasse por algum tempo ficasse desprotegido, a descoberto – para amigos ou inimigos. Você piscava os olhos e a última coisa que via eram as garras de uma Hiena Voadora sobre sua cabeça. Não. Ele não podia demorar ali.
Passou a mão pela Esfera, aquietando-a. Concentrou-se. Entrou, rapidamente, em meditação profunda, a fim de despertar sua Haragei, à altura do Segundo Chacra. Lembrou-se do duro treinamento, das árduas lições, da confiança que o Mestre-Tutor sempre depositara nele... O jovem Angcf era um Aprendiz valoroso e fiel.
Deu o primeiro passo.
Imediatamente sentiu os grãos da areia verde e viscosa se alvoroçarem, pressentindo comida, e, maravilha das maravilhas, comida vinda da Luz, que os alimentaria por eras intermináveis. Os grãos tentavam grudar na aura da presa para dragá-la, lenta e inexoravelmente, rumo ao Poço sem Fundo, onde sugariam sua energia vital muito, muito aos poucos. Só havia uma maneira de evitar esse fim desairoso: era correr sem sentir medo, correr sem parar e com o coração valente, sem pensar em nada que não nas Melodias das Altas Esferas. Um femtossegundo de medo e tudo estaria perdido. Poucos se arriscavam a passar no Areal da Morte Infindável. Menos ainda sobreviviam.
(Só muito desespero justificava sua Legião tê-lo mandado passar por ali. O desespero, infelizmente, era justificável.)
Angcf correu, intimorato, pleno da certeza de que não falharia no primeiro desafio. Ainda teria muitos outros a enfrentar e queria enfrentá-los todos, ver suas asas crescerem e voar, sentir seu cabelo encurtar e receber missões cada vez mais importantes. Não, ele não falharia.
Todo o treinamento, todo o sacrifício e abnegação, tudo valera. Pois Angcf conseguiu atravessar ileso o Areal da Morte Infindável – mas não incólume. Nenhum ser passa por esse tipo de prova e permanece o mesmo. Ainda mais um Aprendiz. Angcf agora trazia nas pernas profundas marcas verdes, onde a areia tentara agarrá-lo. Indeléveis, as marcas seriam, para sempre, a prova visível de que ele era um sobrevivente, um dos Valentes. E saber disso o fortaleceu indizivelmente.
As Rochas do Olvido eram ideais para o descanso e a cura. Mas podiam ser o último repouso para quem não respeitasse o tempo de permanência. |
Ainda assim, escondido nas Rochas do Olvido, tremia, entre assustado e orgulhoso. Não fora uma tarefa fácil, e a próxima seria mais difícil. A próxima? Essa agora já era perigosa o bastante.
As Rochas do Olvido eram ideais para descansar dos perigos e da exaustão de batalhas e travessias. As pedras tinham particularidades que induziam ao relaxamento, à paz, ao refrigério para as feridas do corpo e do espírito. Qualquer um que ali restasse, saía revigorado. Ou não saía. Se o desavisado se descuidasse, e ficasse além do tempo certo, sua mente começava a vagar, uma modorra tomava conta de seu corpo e ele começava a se esquecer da realidade e a sonhar acordado. Para sempre.
Angcf, alertado muitas vezes em seu treinamento, e fortalecido depois da travessia, não se deixou cair na armadilha do Olvido. Descansou apenas o tempo suficiente, levantou-se e preparou-se para o desafio que sempre temera, desde que fizera sua Escolha de Caminho, há tantos e incalculáveis éons.
Passar pelo Pântano dos Anjos Distorcidos. Onde seu amigo Ultkt sucumbira.
Continua dia 11 de agosto a 2a e última parte.
Foto: Pexels 9181 in Pixabay
Comentários
Muito bacana, mas você vai fazer uma escorpiana sofrer à espera da continuação. :)
Talvez não, já é um reflexo de cochilo este mundo onírico adentrando-me a vigília.
💛💜💛
Ana - não, por favor, não vacile quanto perto das Rochas do Olvido. Elas apagam também nossa memória afetiva!
Carla - hahahah, sagitarianos tb sofrem desse mal.
Cris - Mulher, você é poética até na hora de comentar! Linda.
Anônimos - talvez já esteja no forno. Se Angcf escapar, claro...