A CRIANÇA FERIDA E A CRIANÇA ILESA >> Paulo Meireles Barguil

Uma estimada leitora me enviou, na semana passada, sucinta postagem sobre a criança ferida, tendo em vista que, há mais de uma década, conversamos muito sobre isso.

Embora o texto fosse bastante interessante e pertinente, pois esclarecia o quanto as nossas experiências frustradas na infância deixam marcas profundas no nosso crescimento emocional, atônito, percebi o quanto eu, durante anos, acreditei, desenvolvi e divulguei um olhar baseado apenas na falta.
 
Sim, essa perspectiva é parcial, assaz tendenciosa, uma vez que enfatiza e valoriza o que não foi satisfatório ou agradável.
 
E os momentos saudáveis?
 
Se estamos biologicamente vivos é porque recebemos o mínimo de afeto para prosseguirmos na nossa jornada.

Não tenho a pretensão de refutar, nem de analisar o impacto das feridas do passado nas escolhas que fazemos, as quais, por vezes, perpetuam o sofrimento, a despeito do nosso discurso de vítima, que soa vigoroso e convincente, mas que revela, de modo categórico, para um ouvinte sensível, o quanto estamos desconectados da criança ilesa.
 
Sim, ela também está intacta!
 
Antes que alguém me alerte que a ausência da consciência desse vínculo é fruto das mazelas pretéritas, eu ouso contestar e declarar que ele não é vivenciado também porque não temos nos dedicado a entender e a celebrá-la da mesma forma como fazemos com a outra.

Uma estratégia ardilosa da criança ferida é se fantasiar de criança ilesa, na tentativa de que todos, inclusive ela, acreditem que a primeira não existe, apenas a segunda.
 
Ciente sou de que muitas pessoas tentam esconder, de si e dos outros, as suas chagas, de modo especial por não terem recebido, na quantidade e na qualidade por si desejadas, o afeto, o cuidado dos seus responsáveis.
 
Então, vagueiam em florestas urbanas, repletas de zumbis e outras entidades, com a esperança de aplacar seu sofrimento emocional, mediante aplausos, flashes, sorrisos efêmeros, likes e drogas similares ou ainda mais nefastas, pois que degradam corpo e alma.

Como diferenciar uma da outra?

Ah, é bem fácil...

Enquanto uma reclama e fala mal dos outros, a outra agradece e exala amorosidade.

Enquanto uma julga e exclui, a outra compreende e acolhe.

Enquanto uma guarda mágoas e planeja vingança, a outra distribui perdão e emana compaixão.

Enquanto uma vive com fome e acumula, a outra está saciada e partilha.

Enquanto uma está no passado e no futuro, a outra está no presente e na eternidade.

Esclareço que essas realidades não são estanques, definitivas, pois, conforme a Física Quântica explicou no século passado, ondas e matéria são possibilidades da energia.

A criança ferida é a criança ilesa.

Cada um de nós pode vibrar em um padrão ou em outro...

Se você hoje, adulto, não consegue identificar, dar atenção e priorizar a sua criança ilesa, com quem convive ininterruptamente, será que é sensato esperar que outra pessoa, com sua criança ferida, o faça por você?
  
A vida convida você, diariamente, a reconhecer que ambas existem, bem como a assumir a responsabilidade para que elas se (re)encontrem e possa acontecer uma fusão psíquica de imensurável potencial amoroso.

Percebo, com muita alegria, que, cada vez mais, as crianças ilesas estão brilhando.


[Grato sou a Aídda Pustilnik e Cipriano Carlos Luckesi, que, há mais de duas décadas, desenvolvem a deslumbrante vivência Curando a Criança Ferida dentro de nós, a quem dedico essa crônica]

Comentários

Albir disse…
Que interessante, Paulo! Acho que voo um pouco nos aspectos mais técnicos, mas gostei muito.
Analu Faria disse…
Lindo! Ouvi de alguém, há poucos dias, que o exercício da gratidão é o contrário da prática de enfatizar a falta, é o contrário, enfim, da carência. Sempre tive um preconceito enorme contra a onda do hashtag gratidão. Achava modinha. Pode até ser, mas experimentei um "exercício" de gratidão e ele realmente volta nossos olhos, mentes e atenção para um mundo cheio de oportunidades.
Paulo Barguil disse…
Obrigado, Albir: o seu gostar se guia por outros aspectos técnicos. ;-)
Paulo Barguil disse…
Agradeço-lhe, Analu, a partilha do esvoaçar de uma crença sua. :-)

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