SOBRE A GANA DOS TAMANDUÁS >> André Ferrer
A cena remetia à melhor
história de Dalton Trevisan: Uma vela para Dario. Corpo estendido. Roda de
gente. Lamentos por um anônimo.
"Empatia. Falta
empatia nos homens de hoje."
"Seres
irracionais!"
"Sim. Coloquemo-nos
no lugar do outro."
Naquelas três bocas, o
vapor empurrava as palavras. Um fumo branco e fátuo, que se dispersava nos ares
da manhã invernal. Então, aproximei-me. Vi os pés ressecados. As únicas partes
humanas à mostra. Que alma boa, minutos atrás, cobrira o defunto com a Folha de
São Paulo!
Revirado no estômago,
eu conservei os olhos na página que escondia os tornozelos e estampava as mais
recentes descobertas no ramo da entomologia. Eu tinha lido a matéria na véspera
e concordava com quase todos os aspectos da ideia de sociedades artrópodes
defendida pelo autor.
As formigas têm o seu
equivalente do que chamamos de razão, mas é algo imponderável: não conseguimos
nem qualificar nem quantificar uma coisa dessas. O mecanismo evolucionário
provê cada ser segundo as necessidades emergentes no contato com o mundo.
Bastaria, então, sabermos algo do ponto de vista das formigas, o que,
convenhamos, iria muito além de uma simples adaptação no que se refere à
estatura.
"Um metro e
sessenta e oito mais ou menos. Pele branca. Olhos castanhos. Entre cinquenta e
cinquenta e cinco anos."
O outro policial
assentiu. Fez o sinal da cruz e se arvorou na nossa direção. Braços abertos,
pediu espaço. Rodopiou. Disse retoricamente:
"Morreu de
frio."
Um ônibus freou nas
nossas costas. Senti a turbulência da nova leva de curiosos. Fui,
implacavelmente, rechaçado para longe da minha leitura - ou melhor, releitura.
Um homem abriu os
braços. Usava terno e gravata num triste desalinho. Senti o seu hálito
nauseabundo. Queria público. Àquelas horas, com o desjejum adiado ou cancelado,
as pessoas ficam mais susceptíveis. Todos bem mansos. Até os guardas tiraram as
boinas. Relativamente fácil para o homem do terno, ávido por atenção. Tinha
conquistado, enfim, o seu público.
Atordoado, eu ainda
remoía o fascinante e inatingível ponto de vista das formigas. O pastor,
insano, convulso, teatral, abria o Livro Sagrado a esmo.
"Portanto, vos
afirmo", leu ele numa voz retumbante. "Não andeis preocupados com a
vossa própria vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso
corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o
corpo mais do que as roupas?"
Enquanto dobrava a
esquina, perguntei-me, absorto, a respeito da gana dos tamanduás.
Comentários