QUANDO URGE... >> Carla Dias >>
Amanheceu com uma urgência se apropriando de seu espírito.
Respondeu a todas as enquetes que encontrou nas revistas às redes sociais. Leu artigos sobre religião, política, música, futilidades. Consultou livros de poesia, culinária, filosofia, atenta às linhas em destaque, que a fizeram se lembrar do motivo de não apreciar marcadores de texto: o feito deles a cercam, ela não consegue seguir para o próximo parágrafo. Para ela, marcadores de texto impedem a segunda leitura, e assim como no “à primeira vista”, ela não confia na percepção imediata. Precisa se aprofundar, e só então, perceber-se ali.
É viciada em marcadores de texto, de todas as cores.
Ligou para amigos e familiares, o que você acha? Filosofou para o zelador de seu prédio: e se essa urgência que sinto decidir morar em mim?, que lhe ofereceu uma versão poética do silêncio. Sem saber o que dizer, compadeceu-se dela, durante um olhar aflito. Ela agradeceu e comentou sobre os cães da inquilina do apartamento vinte e sete, são tão espertos... De repente, desanuviou-se a aflição, e a feição dele se tornou tela para o deslumbramento com animais tão brincalhões.
Au-au! O zelador imitou o latido do seu preferido dos três, o Zaratustra. Depois riu de si, o que a encantou por alguns segundos.
Água com gás, café, guaraná, suco de graviola, chocolate quente e uma dose de pinga. Fez o pedido, assim, de um fôlego. O atendente do mercado achou que era pegadinha, cadê a câmera? Ela – que nada sabe sobre pegadinhas – olhava ele como se o tal tivesse perguntando onde vivem os anjos. Diante da espera por uma resposta que não vinha, deu-se conta de que o pedido era aquele mesmo. Vou ficar devendo o suco de graviola, mas prometeu que, em dois tempos, traria os outros itens. Logo, colocou os itens que ela queria sobre a mesa e um extra. Para adoçar a vida, disse, ciente da inquietação da mulher. Ela sorriu de volta, o sonho de padaria entre copos e xícara.
Adora sonho de padaria. Não se dá muito bem com o outro tipo de sonho.
Caminhou pelo centro da cidade. Entrou em lojas e questionou os vendedores, o que vocês acham? Alguns foram gentis: lamento, mas não faço ideia, minha jovem. Outros a expulsaram, alegando que o estabelecimento deles não era lugar de gente maluca. Houve vendedor que a convidasse para jantar. Ela declinou, só tinha tempo para essa urgência. Ah, que pena, ele balbuciou.
Uma pena mesmo, porque não tem um encontro há séculos. Abraço faz falta que é o inferno.
Entrou em igreja, templo, assistiu à palestra motivacional, performance musical na rua. Bateu palmas, escutou histórias de estranhos, uma delas a fez chorar. Conversou com crianças, nas quais os pais não prestavam muita atenção, ajudou um senhor a atravessar a rua. A gente fica velho, lerdo, e daí que nem semáforo quer saber de nos conceder um pouco mais de tempo.
Caminhou sem destino, até a noite chegar. Viu a cidade se iluminar, e as pessoas se apropriarem dela. Nem tudo o que viu foi bonito, mas não conseguia se desgarrar da beleza que era assistir à vida acontecendo.
Voltou para casa, andou pelos cômodos em diferentes ritmos. Escutou discos antigos, revisitou fotografias, gritou até ficar rouca e o zelador tocar a campainha para ver se estava tudo bem. Uma barata... Desculpe o escândalo, mas eu tenho horror à barata. Ele procurou o inseto, enquanto o coração apertava por fazê-lo perder tempo a mentira dela.
Assou bolo de cenoura, chocolate e laranja. Lavou e passou roupas, tomou banho e chorou feito criança, debaixo do chuveiro, para que ninguém a escutasse. Assistiu à novela, à série, ao reality show de culinária, ao de reforma, ao de relacionamento. Relacionou-se intimamente com o desejo de aquietar-se e com os pensamentos em alvoroço. Orou, rezou, declamou, decantou.
O que será de mim, amanhã?
Deitou-se para dormir. A urgência continuava nela, incólume e agitada.
Imagem: The Crystal Ball © John William Waterhouse
carladias.com
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