SENTADO À BEIRA DO MAR (DOIS ANOS DEPOIS)
>> Sergio Geia




Ubatuba. Praia da Almada. Vejo-o sentado olhando o mar. Sobre a mesa estão dispostos cuidadosamente em forma de pirâmide: uma carteira de documentos preta, na base; um maço de cigarros Marlboro; um isqueiro cinza, no vértice. Pela cara tomada de rugas, ele deve ter uns setenta. Está sozinho. Veste uma bermuda démodé bege, uma camisa de botão listrada, sandálias de couro.

É uma tarde de verão especialmente linda. O mar nunca esteve tão verde (o mar é azul! — uma voz me buzina no ouvido). Não, amigo, neste caso, o mar que está agorinha à minha frente, este aqui que estou vendo com os olhos que Deus me deu, este mar é verde. Ah, é verde! Radiantemente verde! As espumas que brotam da arrebentação são brancas, mas são tão brancas, e tudo é de uma nitidez tão impressionante, que a cena toda parece irreal, uma imagem digital, trabalhada, coisa de cinema. Deveria estar no mar, isso sim, lá dentro, sentindo o sol e o vento na pele, a água gelada a refrescar o corpo. Mas confesso que a coisa aqui fora também me interessa. E muito, apesar de estar rabiscando tudo isso precariamente numa maçaroca de finas folhinhas de guardanapo. Mas é o que tenho, oras. E quando iria imaginar que fosse me deparar com um personagem de uma de minhas crônicas fumando seu Marlboro em plena praia da Almada?

Na verdade, o que me chamou a atenção nele foi sua atitude de balançar as mãos como se tivesse avistado alguém. Sabe aquela cena clássica do cara perdido numa praia deserta pedindo socorro? Pois é. Igualzinho. A diferença é que ele não tirou a bunda da cadeira, mas o movimento das mãos, dos braços, igualzinho.  Logo percebi que ele queria chamar a atenção de um vendedor de queijo coalho. E num certo momento parecia mesmo ter conseguido. Doce ilusão. Ele ficou ali, triste, solitário, irritado. E sem queijo. Desde então minha atenção abandonou o mar, a paisagem, o copo de cerveja, e ficou nele. E aí, meu querido, a mente viaja. Será que tem filhos? Netos? Onde estão? E sua mulher? Morreu? Separou? Ou será que nunca se casou? Não tem filhos, nem netos, nem mulher, nem ninguém?

Percebo num dado momento que ele fica imóvel olhando as ondas que vêm e vão. E fica assim por um bom tempo, segundos, minutos. Nem uma mulher gostosa, bronzeada, que passa à sua frente é capaz de fazê-lo se desconectar do mar. Ah, ele sofre por amor. Olhar as ondas, totalmente desconectado do mundo? Só tem uma explicação: amor não correspondido. Meu amigo sofre, e sofre por amor.

Fico com vontade de puxar conversa, de saber mais sobre o meu personagem. Sinto que ele tem vontade de falar com alguém. Talvez seja tímido. Puxa vida, vir à praia neste dia lindíssimo e não conversar com ninguém? Deve ser triste demais. A única pessoa a quem ele se dirigiu nessas horas em que ficou olhando o mar foi o vendedor de queijo coalho, uma linguagem corporal muito bem feita, mas inútil. E o garçom, obviamente, a quem pediu as cervejas que tomou (foram três) e um quibe. Levanto-me com a intenção de dar um mergulho. Me aproximo de sua mesa. “Boa tarde”, digo, como quem não quer nada. Ele me olha desconfiado. Toma o último gole de cerveja, desmancha sua pirâmide, põe tudo no bolso e se levanta. Vejo que seus olhos parecem molhados. “Boa tarde”, me responde emburrado. Faz um gesto com as mãos que não entendo. E vai embora.

P.S.: Esta crônica foi escrita há quase dois anos. De volta a Ubatuba, de volta à Almada, eu encontro o meu amigo na mesma mesa, fumando o mesmo Marlboro, olhando o mesmo mar com o mesmo olhar perdido. E solitário. Tristemente solitário. Seu nome é Jamil. Só tive tempo de lhe desejar um ótimo 2016. Ele pegou sua carteira, seu Marlboro, seu isqueiro e se mandou. Desconfiado.


Ilustração: Edouard Manet

Comentários

branco disse…
Como sempre, como nunca. Descobrir o que existe atrás de uma imagem, o pequeno, afinal, o ser humano é tão pequeno em relação ao mar, ao céu, ao tudo, "agigantado".
Meus respeitos e minha saudação
Fiquei aqui imaginando como seria a crônica do Jamil a respeito do Sergio... :)
sergio geia disse…
Grato, queridos. Não quero nem imaginar, Eduardo

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