VIDA PERFEITA #SQN >> Fernanda Pinho
Acordou atrasada e poderia ter atribuido à pressa o fato de
a saia lápis 38 ter rasgado quando tentou vesti-la. Mas seria injusto com a
pressa. Já havia se pesado secretamente e sabia que as festas de fim de ano lhe
haviam trazido quatro quilos de volta. Optou por uma calça de cintura alta 40.
A primeira que viu pela frente, já que não havia tempo para a escolha. Tudo
bem. A calça também fazia um belo par com a blusa amarela de seda que estava
usando pela primeira vez. Primeira e última, conforme lhe passou pela cabeça
quando, ao chegar no escritório, sentiu o calor do café da mocinha do
almoxarifado inundar sua barriga depois de um esbarrão inesperado. Diante do
incidente, aceita emprestada de um colega uma camisa branca de malha, sem graça
e masculina. Melhor que passar o dia melada de café. Tenta se concentrar no
trabalho, mas sabe que não irá render enquanto não fizer aquilo. Vai ao
banheiro e liga. Ele demora, mas atende. Ela despeja tudo o que havia ensaiado
durante a noite de insônia. E coloca um ponto final. Mais um. Já foram tantos
que virou reticências…
Enxuga as lágrimas, retoca o corretivo, passa duas fases no
Candy Crush e já é quase hora do almoço. No restaurante de sempre, lembra-se do
episódio da saia rasgada e pede uma salada. Come a salada. Lembra-se do
episódio do telefonema e pede um prato executivo com picanha, farofa e batata
frita. Come a picanha, a farofa e a batata frita. E um brigadeiro, já que foi
almoçar sozinha e ninguém viu. Tudo certo. É a primeira vez em que sente alguma
satisfação naquele dia.
Consegue até reunir alguma energia para passar a tarde
analisando entediantes planilhas no Excel. Com fones de ouvidos devidamente
ligados, uma vez que não suporta o ruído que o colega da mesa ao lado faz ao
mastigar chicletes.
Antes do happy hour com as amigas, decide encarar a
academia. A culpa pela picanha na hora do almoço ainda não foi digerida. Ignora
solenemente a existência de alguns aparelhos e resolve que é dia de caminhar na
esteira. Correr, só amanhã.
Como era de se esperar, o encontro com as amigas é
revigorante. gargalhadas até a terceira dose de tequila que desce junto com as
primeiras lágrimas, descumprindo a promessa feita quinze minutos antes de que
não choraria mais por ele.
E chorou até a cama, onde encerrou aquele diazinho besta. Ou
não tão besta. Ao menos, postou a foto do look do dia feita no elevador,
escreveu no Facebook uma indireta em forma de frase atribuída ao Caio Fernando
de Abreu, contribui com a imensa coleção do Instagram de fotos de saladas e
pessoas na academia, contou pra todo mundo que estava ouvindo U2 durante o
expediente, e deu check-in no bar onde esbanjou felicidade com as amigas.
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