VIDA DE VIÉS >> Carla Dias >>
Desafio-me a pensar sobre o que jamais pensaria estivesse lidando com a rotina emocional, enquanto desejo apenas o que venho desejando há tempos, nada além. Como mostra uma canção que frequenta o meu gosto, estou presa em um momento, em um cenário, e sequer sabia que poderia escapar da armadilha que ofereci a mim mesma. Eu não conseguia sair do lugar, mas porque não conhecia a possibilidade de migrar da minha realidade, ela absorvida por automático cumprimento de tarefas, para dias mais afortunados. Felizes, até.
Às vezes, olho para os outros, em seus afazeres cotidianos, seus trabalhos, suas vidas organizadas ou completamente caóticas, e me imagino vivendo aquilo que eles vivem, apenas para analisar se seria possível eu ser outra que não esta. Mas a verdade é que, normalmente, sinto-me alinhada à coerência das minhas buscas, que são simples na teoria, mas que podem se tornar um tanto complexas na execução. Sendo assim, ao acordar de mim, envolvida em uma elucubração que me permite um primeiro movimento para quebrar a estagnação, percebo que a pessoa que desejei construir está em reforma, antes mesmo de a construção ser finalizada.
Mas há quem diga que assim é a vida: de viés.
Aprender a possibilidade de transformação, através do eco das minhas erradas, não tem sido acolhedor, nem mesmo quando discuto o assunto comigo mesma, em tom filosófico. Não há máscaras que realmente disfarcem as derrotas em batalhas adquiridas em prol dos planos predeterminados para fazer acontecer a vida, de acordo com as minhas determinações, e não para serem mutáveis e construir opções capazes de enveredar pelo desconhecido. E por isso, acabo por remoer desacertos como quem os coleciona, porque a minha transformação vem de encontro ao direito, recentemente adquirido pela minha pessoa, de flexibilizar o que, antes, parecia-me definitivo.
E fragilizar sem a certeza de que, ao fazê-lo, torno-me adepta da covardia de não levar adiante os meus planos de vida, de acordo com o manual de instruções de minha autoria.
Neste momento, sinto que tais planos apenas me levaram a esmerar em cuidar do futuro que imaginava, sem que eu pudesse dialogar com as surpresas. Agora, chega-me a constatação de que surpreender-se faz parte de um plano maior, que não sei de onde vem ou aonde me levará, mas que, quando me permito pensar a respeito, em tom metafísico, mostra-se imprescindível a qualquer um que abrace a vida, e suas pompas e desapontamentos.
Apesar de me aborrecer com as surpresas nem sempre bem vindas, considero-me uma nova discípula da arte de permitir-se a descoberta. Ainda não sei se gosto ou não disso e daquilo, sequer se esbarrarei com a tristeza de não ter realizado o que desejava, ou com a alegria de ter alcançado o possível. Ainda estou aprendendo quem posso ser sob o olhar do indefinido. E talvez eu navegue pelos mares ou aprenda a cozinhar, escale prédios e me torne empresária de sucesso, ou dona de cafeteria, revistaria, padaria, pet shop ou shopping center, anfitriã de almoços oferecidos aos amigos. Quem sabe o meu mérito esteja nas artes, na alegoria da poesia – concreta ou indiscreta – ou na prosa, na crônica insinuada com crueza, mas alegria. Ou no erotismo da catarse emocional, quando beijos não são apenas beijos, mas descobertas, e as velas são verdadeiros faróis para a alma encontrar o desejo.
Quem sou: em construção.
STUCK IN A MOMENT YOU CAN'T GET OUT OF - U2
Imagem © Cristiane Zamora
Comentários
acho que estamos todos sempre em construção."Estou construído" sugere declaração póstuma. O máximo que podemos dizer é "já fiz algumas coisas", porque até afirmar que foi muito ou pouco é temerário.
Albir... Acho que a minha mensagem póstuma será sobre a falta de tempo em terminar essa construção, que se transforma em reconstrução, em vida.