SOUVENIR >> Carla Dias
Uma sacola de supermercado estrangeiro voava feito pássaro desorientado e acabou entrando pela janela da minha sala. Passei um tempo observando aquele plástico sujo, amassado e rasgado, que pousou no meu sofá, levando-me a pensar que precisava ir às compras:
- arroz
- feijão
- sal
- um passeio pelos corredores para esticar as pernas
No armário da cozinha, a panela emprestada para atender o alimento necessário em dia de celebração que a agenda tudoaqui.xlsx parou de me ajudar a lembrar. A variedade dos eventos que ela anunciava foi aprisionada por uma senha que decidiu se refrescar no meu esquecimento. Tentei todas as que ainda se esgueiravam pela minha memória: quemsabeumdia, umdoistresefechou, desilusoesadoramcalmantes, talvezseeufosseoutrapessoa etc.
É nisso que dá colecionar em vez de viver. O esquecimento toma conta, nos distrai quando lavamos o chão, organizamos os livros, trabalhamos para o sustento e lutamos para não sermos dispensáveis enquanto nos tornamos dispensáveis.
E odiamos uns aos outros, ao mesmo tempo que nos esbaldamos em mentiras elaboradas por nós mesmos, que facilita acreditarmos que o sentimento do outro sempre corresponderá ao nosso.
Prometi que viveria esse hoje com a coragem dos que não se rendem à letargia. Então, a melancolia chegou, sedutora e confortável, e me colocou sentada no sofá, ao lado da sacola que conheceu mais mundo do que eu jamais conhecerei.
Souvenir da solidão, agarro-me às janelas da vida. Não entro nem saio.
Imagem © Gerd Altmann por Pixabay
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