DESAPRISIONAMENTO >> Carla Dias


A moça tem esse olhar desolado, porque perdeu o rumo da casa que nunca teve, onde hoje moram alguns autoproclamados deuses, que vivem a debochar da ingenuidade dessa figura de faces rosadas.

Saltimbancos, desertores da benevolência, esses deuses carnavalescos e traquinas se sentam à beira do destino, sacando batatas Chips de saquinhos barulhentos, atazanando a sessão de vivência da moça, que ainda pensa que o barulho todo vem do apartamento ao lado, da falta de disciplina nos estudos do vizinho que tenta se tornar violinista.

Como se não bastasse, eles, os deuses desembestados, gostam de criar desejos na alma dela, sendo a maioria deles de realização inalcançável, como o amor denso, intenso e urgente que se pegou sentindo pelo moço que sequer conhece ou a vontade de salvar o mundo de problema que não sabe qual é.

Sem conseguir se tornar a amante ou a heroína, desafiada pelo enviesado humor desses deuses solitários, que, para curar as próprias feridas, divertem-se à custa da sorte dela, a moça caminha tão lentamente, como se carregasse pesada cruz e seus pés estivessem amarrados, encurtando dolorosamente seus passos.

Os tais deuses, os que lambem beiços pela capacidade da moça de sentir como eles jamais sentirão, decidem, em uma partida de truco, qual deles será autor da próxima agonia dela. E alvejam seu sono com cenas inéditas e de tristeza tão profunda, que lágrimas lhe escapam dos olhos fechados, mantendo-a prisioneira das galhofas deles.

Então, nasceu este dia, entre os dedos do universo, bem no momento em que ele bocejou e se espreguiçou. A sonsice desse momento, que chegou infestada de bom agouro, despertou a moça para o tempo. As desafinadas cordas vizinhas pareciam lhe açoitar, mas desta vez num ritmo cadenciado e desprovido de distrações, de quase permitir que ela sentisse a música lhe roçar as costas, gentilmente.

Um sorriso lhe escapou, seguido da tontura provocada pelo sapatear dos deuses inconformados por terem perdido a hora, permitindo que a moça sentisse o que não estava no menu criado por eles. E gritaram desventuras, esbravejando indecências. A moça rodopiou, numa coreografia desengonçada, de dança injuriada. Ela rezou um poema de Quintana num rosário de silêncios, ruminando a religiosidade dos que se sabem benfeitores, apesar do sentimento escravizado .

Os deuses sabotadores, mal-amados lambendo a crueldade, trançavam os cabelos da moça no fim da tarde, enquanto cantavam rimas de inutilidades e sofreguidão. E a alma dela, enquanto sentia os dedos ásperos a lhe cutucarem a nuca, saiu para passear por aí, bem longe da casa onde viviam aqueles que se autodenominaram deuses, apesar de suas trapaças.

Nas cordas tensas do violino vizinho, a moça se deitou para experimentar a vibração da desalinhada música que ensaiava apegos. De longe, vinha a falação irritada dos ditos deuses que pensavam em jogos, impunidades, desafetos para perturbá-la e trazê-la de volta ao aconchego de suas habilidades impiedosas.

No entanto, a moça, cansada das brincadeiras sem graça dos deuses infelizes, permaneceu embrenhada nas cordas do violino, os ouvidos atentos aos efêmeros momentos em que elas entoavam a beleza do som, momentos estes suficientes para alimentar sua alma de esperanças.

Após um concerto dissonante, a moça fez as malas, e sem dar adeus, mudou-se da sua não-casa para a casa ao lado, para um relicário no canto da sala, onde se ajoelha, diariamente, e entoa um poema de Quintana em um rosário de silêncios, pouco antes do concerto do violino. Há tanta ternura na mudez dessa moça que os deuses falseados a observam de longe, emburrados, mãos lambuzadas de desolação.

E dói em cada um deles a ausência da moça-títere.

E se esbalda a moça amparada pelas cordas do violino, sem amante para amar, sem mundo para salvar, mas acompanhada pela liberdade aprumada.

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Este texto faz parte do Crônica de um ontem e foi publicado originalmente em 15 de abril de 2009.

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Imagem: Henri Matisse - Interior with a violin 

carladias.com

Comentários

Zoraya Cesar disse…
ah, essa maravilha eu nao conhecia, nao tava no cronica ainda. E, como digo sempre, vc já nasceu clássica. Atemporal. Belíssima e, sobretudo, sobremuitotudo, inquietante.
Carla Dias disse…
Obrigada, Zoraya. :)

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