tio irso >>> branco
tio irso acordou muito cedo naquele dia
tomou seu café colocou a mochila nas costas e saiu
começou a assobiar uma canção alegre
e enquanto caminhava em direção a sua terra prometida
os vizinhos madrugadores olhavam para suas costas
e perguntavam-se para onde ele estaria indo
mais tarde - no mesmo dia-
todos comentavam entre si
por deus
agora ele ficou louco de vez
tio irso chegou a um lugar chamado quatro
e ainda estava assobiando a canção quando olhou para os lados
e viu cérebros
cérebros piscantes cérebros enevoados e opacos cérebros tranquilos
pareciam amistosos e telepaticamente deram-lhe as boas-vindas
sentou-se e foi rodeado por eles que lhe ofereceram um chá
conversaram - ainda telepaticamente - e eles falavam sobre as maravilhas
da medicina moderna
não se usava mais o cavalo e uma simples dose os levava ao paraíso
e que isso era uma revolução dentro do verdadeiro poder da criação
achando tudo aquilo um pouco artificial e agradecendo pelo chá
colocou-se em pé pegou a mochila e assobiando partiu
enquanto os cérebros diziam
por deus
ele deveria ter ficado nós o ensinaríamos a ser feliz aqui
tio irso fez uma parada em uma terra chamada sol
ainda estava assobiando quando ouviu os primeiros risos
risos variados gargalhadas estridentes ou graves
riu também ao ver milhares de bocas flutuando
conversou com diversas bocas que - entre uma gargalhada e outra -
lhe ensinavam novas piadas
e também de como a vida não pode ser levada a sério
toda essa alegria pareceu-lhe inconsequente
sorrindo recolocou a mochila e assobiando partiu
enquanto as bocas - a gargalhar - diziam umas às outras
por deus
ele não entendeu a piada
tio irso - em sua caminhada - chegou a um lugar chamado magia
parou de assobiar e prestou atenção a um gemido
logo ouviu outros
de mães que perderam seus filhos dos órfãos de simples mendigos morrendo
no inverno
eram muitos e muitos outros gemidos
de dores físicas de dores emocionais de dores espirituais
eram gemidos de todas as dores -conhecidas ou não -
sentou-se conversou com os gemidos enquanto tomava um gole de d'água
os gemidos gemiam suas angustias e desesperos seus medos e escuridão
e de como a vida pode ser cruel com os seres humanos
tentou colocar em palavras algum tipo de consolo
mas percebeu que os gemidos continuavam desesperançados
sentindo-se pouco útil pegou a mochila e partiu
enquanto entre gemidos os gemidos gemiam
por deus
por que ele não tentou nos ajudar?
tio irso - um pouco cansado pela caminhada - chegou as terras da rainha
ainda não tinha parado de assobiar e olhos inquisidores já perguntavam
o porquê de tanta musicalidade
obsevaram seu chapéu e suas roupas gastas e inquiriram como poderiam
conseguir iguais
o olhos não o convidaram a sentar e tampouco mostravam o que sentiam
não encontrou a verdade em um olho que parecia preocupar-se com ele
os olhos o olhavam e uns para outros com recriminação
olhavam maldosamente cada milímetro de cada parte sua
tentou dizer a eles que suas roupas ou modos não eram especiais
um olho o olhou de modo penetrante até fazê-lo compreender que suas
roupas não combinavam
sentiu um desconforto e sabendo que estava em perigo pegou sua mochila
disse tchau e partiu
disse tchau e partiu
enquanto arregalados os olhos recriminavam-no entre si dizendo
por deus
esse idiota não pode ter o que não temos
tio irso olhava o pôr do sol -enquanto caminhava - e chegou a um
lugar chamado solidão
parou de assobiar e deixou sua mochila cair sobre a areia sentou-se e comeu
um pedaço de pão
um pedaço de pão
lembrou-se de tudo que tinha visto e pensou em tirar uma soneca
a areia ora branca ora vermelha as pedras escuras o céu azul claro/marinho
o horizonte avermelhado
o horizonte avermelhado
achando que seria perda de tempo ficar por ali pegou sua mochila e retomou
seu caminho assobiando
seu caminho assobiando
enquanto ecos de sua própria canção pareciam perguntar
por deus
por que ele não fica e nos faz companhia?
tio irso caminhava pela escuridão quando chegou às terras dos maieutênicos
era repletas de espelhos e ficou boquiaberto ao ver-se em um deles
colocou cuidadosamente a mochila no chão
e seguiu vagarosamente por entre aquelas paredes brilhantes
viu-se de diversas maneiras - como nunca se tinha visto antes -
viu seu cérebro fora da cabeça piscando ou sua boca aberta mostrando
os dentes
os dentes
-via o impossível - seus gemidos refletidos
e via seus olhos olhos olhos olhos olhos
viu-se não refletido - apenas o espelho vazio -
viu sua cara refletida em milhões de reflexos
milhões de irsos
respirou fundo sabia que tinha que se acalmar e na -ainda- mais perfeita
escuridão
escuridão
pegou sua mochila e saiu correndo dali
enquanto fugia meditou-se -refletiu-se-
por deus
qual daqueles irsos sou eu?
tio irso com sua mochila nas costas caminhava assobiando a alegre canção
o sol bondoso começou a nascer mostrando suas pegadas na terra vermelha
era longo o caminho que se abria à sua frente
tio irso sorria tranquilo enquanto seguia pela estrada e pensava
por DEUS
estou indo para casa!
fim
ilustração : ana betsa
Comentários
Elaine Franco
Excelente
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