A PESTE >> Albir José Inácio da Silva
Muita gente pensa que isto aqui era quilombo. Mas
não era. Se olhar direito, por debaixo dos matos, vai encontrar os restos da
casa grande que o cupim e o tempo derrubaram.
Alguns contam histórias de revolta de negros que
mataram os senhores, mas pouca gente sabe o que se passou. Ninguém gosta de histórias
de maldição e eu também fiquei assombrada por muito tempo e não queria falar do
que eu vi. Mas agora, na velhice, até jornal já veio conversar comigo.
A única ainda viva na cozinha era a Kinah, que não
conseguiu se levantar, queimando em febre no porão aonde a gente dormia. Eu já tinha
doze anos, então acendi o fogão, passei o café e assei umas broas. Na sala,
Sinhá Martina estava sentada perto da janela com roupa de ontem ainda.
- Sai daqui com isso, negrinha, que eu já vomitei
até as tripas! – disse com o olhar na janela e os braços caídos.
O padre estava encolhido em outra cadeira, com fundas
olheiras e careta de dor. Com um gesto de mão, ele me mandou embora. Eu arriei
a bandeja no aparador e fiquei por ali sem saber se devia falar da febre de Kinah.
Resolvi voltar pra cozinha, mas ainda ouvi do corredor:
- Só esta negrinha anda serelepe pela casa. O resto,
quem ainda não morreu, está arriado – comentou o padre antes de um acesso de
tosse.
- Satanás protege os seus. – blasfemou a Sinhá.
Sinhá tinha lá suas razões pra não gostar de mim.
Não gostar de pretos. Principalmente de pretas. Ela me ignorava, mesmo quando
falava comigo. Nunca olhou pra mim.
Nos últimos anos, com o fim do cativeiro e a chegada
da seca, o Comendador pegou “banzo de nego”, como dizia a sinhá. Ficava pelos
cantos da casa, bebendo paraty e não saía mais nem no quintal. Até que morreu
na semana passada, também vítima da peste.
Mas antes ele não parava. Era um tempo bom, de
fartura, centenas de cabeças de gado e centenas de cativos lavrando centenas de
alqueires verdes e floridos. A usina vomitando fumaça doce e a casa de farinha
rangendo. Sinhô passava o dia a cavalo correndo a fazenda e distribuindo ordens.
E corria também atrás das negrinhas. Foi assim que
eu nasci. Minha mãe tinha uns doze anos quando a minha avó, que trabalhava na
cozinha, convenceu a Sinhá a trazer a filha pra casa grande. Não demorou muito
e minha mãe estava de barriga.
Minha mãe quase não cresceu o buxo e quando eu
nasci não tinha leite. Me deram leite de vaca mas eu vomitava só com o cheiro. Cheguei
a receber extrema-unção. Com pena, o comendador arranjou uma ama de leite que
passava lá de vez em quando. No resto do tempo eu ia comendo água de arroz e
papa de mandioca.
Contrariando todas as expectativas eu fui crescendo.
Sempre passava despercebida, era um quase nada. Ninguém me chamava nem pelo
nome, Filisbina. Quando aos três anos, por causa da minha magreza, tentaram
acrescentar um caldo de carne ou um frango desfiado na minha cuia, eu de novo
vomitava até as tripas e ficava me tremendo toda.
Pelos lamentos de Sinhá Martina, as pragas
começaram quando eu ainda era bebê. E a primeira desgraça foi a abolição.
Primeira, porque ela não contava as safadezas do Comendador que a deixavam com
raiva, mas Padre Antônio acalmava:
- Deixa pra lá Sinhá. Isso é coisa de homem. O
importante é que a senhora é a Sinhá.
O fim da escravidão não serviu de nada pra minha
mãe, que continuou na cozinha e no porão. Eu era muito pequena, mas dizem que ela
morreu de maus tratos pela Sinhá Martina.
(Continua em 06/04/2020)
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