A CADEIRA >> Fred Fogaça
Uma cadeira descansa no canto admirando o vazio do quarto.
Às vezes eleva o olhar pela janela e tenta ver lá fora, depois do muro, camuflada na cor da parede pra passar despercebida de ser trocada pela ausência. Suas pernas largas encostadas em livros não se deixam desfalecer. Se apoia nos fechados, segura os abertos e vai derramando as palavras devagar na corrente de vento.
No armário, as lembranças empilhadas em ordem cronológica se misturam com as roupas e restos de ser. Como as portas estão sempre fechadas, suas cores escorrem furtivamente pelas frestas, saem de soslaio pelo vidro aberto e levam um pouco do colorido das paredes também.
O tempo, talvez, fuja sem volta. Paulatino em sua paciência, cerra a porta com o cuidado de não ser notado, põe-se na cadeira e se entrega. A lua disfarçada com as lâmpadas dos postes observa discreta o vão entre dias, esconde segredos libidinosos no desabitado das ruas e reflete o desatino nas páginas brancas.
Dar de ombros: quem sabe o que há lá fora? O que não é abstrato foge ao controle.
*publicado originalmente no Jornal de Caruaru - 17-10-2019
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