DESAPARECIDO >> Zoraya Cesar
Alto, louro, olhos azuis, um digno representante da Ilha da Madeira, onde nascera ele e seus antepassados. O pai, um daqueles portugueses rudes, quase primitivo, tinha conceitos de educação bastante simples: meninas serviam como escravas do lar e parideiras; meninos, para trabalhar desde cedo e fazer jus ao pão de cada dia, que a vida era dura e o progenitor não estava ali pra sustentar vagabundo. Se quisesse comer, o menino tinha de colaborar. Ou era porrada no lombo.
Pois educação boa era aquela que chegava logo à alma, via corpo, deixando marcas indeléveis e inesquecíveis. O menino, assim que ganhou alguma autonomia, digamos, aos 16 anos, fugiu para o continente. Fugiu da pobreza, da falta de horizontes e da vida apertada. Sobreviveu graças às duras lições aprendidas com o pai e conseguiu, até mesmo, razoável instrução. Não virou doutor, causídico, boticário. Mas tinha boa cabeça para números, cálculos (qual português não tem?) e, quem poderia imaginar, línguas. Era jovem, audaz e confiante. Saiu a conhecer o mundo, navegando como embarcado por mares já navegados e aportou na Inglaterra; ficou por lá algum tempo - o que explicaria sua fleuma quase britânica, seus modos formais, diferentes dos expansivos modos latinos - e partiu (ou fugiu?) novamente, chegando ao Brasil por volta de 1930.
Mais especificamente, sabe Deus porquê, em Manaus, àquela época uma terra distante, selvagem, misteriosa, el dorado em plena expansão. Terra de aventureiros dispostos a trabalhar para ganhar dinheiro. Com o comércio em seu sangue, obteve sucesso como caixeiro-viajante, vendendo produtos de porta em porta, encantador com suas maneiras educadas, suas histórias pitorescas narradas naquele leve e indefectível cantar lusitano. Conhecia gente de todo tipo. Fez amigos e inimigos. Prosperava.
Casou-se com a filha de Agostinho Cesar de Oliveira, cearense que migrara para o Amazonas decidido a vencer na vida e venceu, fundador da gráfica Cesar, em Manaus, que, por muitos anos além do começo dessa história foi famosa e rica. A moça tinha olhos e cabelos negros, um nariz grego perfeito e uma pele de pêssego que nunca emurcheceu até sua morte, aos 72 anos. Tinha um amor pela vida sem paralelos. Era conhecida como pé de valsa, cantava, tocava violão. Uma companhia adorável. Mudaram-se para São Paulo, the promised land tupiniquim, sonho de todo interiorano ou estrangeiro interessado em ganhar dinheiro no Brasil.
Trabalhou duro como sócio de uma firma de exportação e importação que acabou não dando muito certo depois de alguns anos. Assim como o casamento. Ambos, trabalho e casamento, deram frutos, claro – do trabalho, problemas com credores e falência; do casamento, dois filhos, um menino e uma menina.
Oito anos após o nascimento da menina, que costumava esperá-lo todos os dias no portão, o ainda jovem lusitano saiu para trabalhar e desapareceu. Sumiu e não voltou, nem deu notícias, sinais, nada, nada.
Jamais houve uma explicação razoável. Nunca lhe encontraram o atestado de óbito, passaporte, bilhete de viagem, corpo, nota de despedida, nada. Amigos, família, se alguém sabia a verdade, nunca revelou. Evadira-se da polícia, dos fiscais, dos credores, das dívidas? Encheram-se-lhe os olhos de horizontes profundos e os ouvidos de cantos sereios e ele voltou para o mar? Não teria ele aguentado a responsabilidade de cuidar do rapazinho e da mocinha? Ficara insuportável conviver com a mulher, cheia de energia, querendo sair, dançar, cantar, naquela independência que tanto a caracterizava e que tanto o encantara há anos, mas, agora, era simplesmente cansativa? Teria ele fugido com outra, a outra com a qual, de repente, formara uma nova família? Ou, quem sabe, a própria esposa o tivesse posto para fora de casa, sob ameaças veladas e perigosas, que ela não queria estorvo a atrapalhar sua vida. Vá e suma, se não sumir por bem, vai sumir por mal... Talvez tenha descoberto uma doença mortal e incurável e, qual os elefantes, decidira voltar para morrer na terra natal. Sem avisos, sem choros ou velas, achou que assim seria melhor para todos. Ou bandidos o assaltaram, mataram e esconderam o corpo. Pode ter sido abduzido.
Ou, quem sabe, algo mais sinistro se esconda por debaixo de todo o silêncio que sempre acobertou essa história. Pode muito bem ser que Antonio Fernandes Relva Júnior tenha tido morte não morrida, mas matada. Pode não ter sumido por conta própria ou acidente, mas por encomenda. Famílias e empresas guardam segredos soturnos, pessoas guardam negrores no coração. E quem sabe o que o aventureiro, marujo, vendedor, comerciante, pai de família fizera? Com que mulher vingativa, marido ciumento, sócio ultrajado ou desonesto se envolvera, e, por ter Antonio esquecido de apagar os rastros, encontraram-no numa curva do caminho?
Ninguém nunca soube. O lindo português da Ilha da Madeira sumiu na fumaça da vida, levando, com ele, seus mistérios. Mas deixou a menina a esperar, até hoje, 70 anos depois, que o pai chegue, de volta, ao portão.
Amigos, perdoem relato tão íntimo, essa mensagem a alguém que amo. Esperanço que ela e também aqueles que viram um parente querido sumir estrada afora, sem justificativa ou motivo aparente, e nunca mais voltar, entendam que uma partida inexplicável explica-se por si só. Que alguns desaparecem por simplesmente não darem conta de si mesmos. Que a decisão pode ter sido dolorosa para ele também, e que, muitas vezes, como os suicidas, a pessoa não viu outro caminho. E que, embora dando as costas ao passado, carregam, lá no fundo, dentro do peito, uma lembrança de amor por aqueles a quem deixaram. Que alguns segredos familiares - por mais que nossa curiosidade deseje ser satisfeita - nossa Alma está melhor sem saber.
E que entendam, principalmente, que não precisam ficar para trás o resto da vida. Cada um tem seu destino, mas nós construímos nosso próprio carma. Não há o que perdoar àqueles que se foram por vontade ou falta de vontade própria. E não há nada a impedir o fluir magnífico da existência. Deixem que os mortos enterrem seus mortos!
Prometo prometido que da próxima vez será um conto tradicional Zoraya. Beijos e obrigada por participarem dessa estranha história familiar.
Mateus 8,22, Deixem que os mortos enterrem seus mortos.
Foto:
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Comentários
O texto ficou maravilhoso, Zo, de uma sensibilidade fora de série... Amei...
1 - eles sempre são surpreendidos por suas narrativas;
2 - o nível de seu texto é sempre excepcionalmente alto.
Parabéns pelo texto!
"...Nunca lhe encontraram o atestado de óbito, passaporte, bilhete de viagem, corpo, nota de despedida,...",
você acabou de assinar o atestado, carimbar o passaporte, furou (sou antigo, dos tempo dos furinhos) o bilhete de viagem, encontrou o corpo, leu a nota de despedida e o fez magistralmente.
um pouco mais leve, as vezes vai reler o atestado, lembrar do corpo ( e do espirito), mas será mais leve e você sabe o motivo.
cada um sabe a dor do seu sentir
Parabéns!
Márcio - seus comentários generosos tb nao falham! Obrigada
branco - vc nao tem ideia de como suas palavras me ajudaram. Resumiram todo o sentido de contar essa história. Muito obrigada. Obs: até comentando o texto dos colegas vc é poético, né?
Marcia - devo essa lavagem de alma a você. Sem o seu estímulo, eu não a teria escrito. Nem sei como agradecer.
Nãdia - minha Mãe é a menina que ainda olha para fora, para ver se o pai chega no portão.
Gente, valeu, de verdade.
Sempre fomos deixados por alguém, denotativa ou conotativa mente.
e se não há motivo que possa explicar, nem pra si mesmo, o que se faz da própria vida?
a cada um cabe o seu próprio seguir em frente, sabe lá em que direção e a gente só responde mesmo, e olhe lá, pelos próprios passos...