YUTL, QUE VEIO DA TERRA >> Zoraya Cesar

A casa era velha, velha, quase coitada. Por fora, poderia até parecer, ao primeiro olhar, abandonada. 

O observador menos distraído, no entanto, percebe uns detalhes aqui e ali: uma cortina de chita limpa de doer a vista esvoaçando pela janela; flores viçosas e um enorme pé de jurema no jardim, e aproxima-se, curioso. A porta está entreaberta e o observador dá uma espiadela no interior. A sala era pequena; de móveis, apenas o essencial - todos muito antigos, mas bem conservados.  

Movido pela curiosidade, Yutl entrou. Cheirava bem, a casa. Cheirava a alecrim, eucalipto, sálvia. Ervas de cura! Yutl ficou contente. Isso era bom sinal. Saiu para dar uma volta no quintal e pulou de contentamento ao ver diversos troncos podres cheios de cogumelos venenosos, prontos para serem colhidos e transformados na mais deliciosa cerveja do mundo. 

Flores, ervas, jurema, cogumelos... Era quase o Paraíso. Para ser um lar, só faltava conhecer seu morador. Mordiscando folhas de erva-doce para se acalmar, esperou, sentado atrás de um pé de manacá de
O manacá de cheiro,  a ipomeia,
antúrios cristalinos exalam
inebriantes e maravilhosos
perfumes ao anoitecer
cheiro. O Sol se despedia da tarde, enfeitando o céu de lilás e delicadezas. Ipomeias e antúrios cristalinos abriram-se, permeando o ar de fragrâncias melodiosas e ricas. Yutl exultou, suspirando de felicidade. Simplesmente amava flores de cheiro noturnas. Inspirado por toda aquela beleza, resolveu fazer uma surpresa ao morador, em agradecimento por aqueles momentos felizes.

Ajeitou as ervas que estavam na pia da cozinha, empurrou o tapete para dentro, encheu o pito de fumo. Mal escondera-se de novo, e ela chegou. 

Era uma velha, velhinha, que nem a casa. Magra, magrinha, quase um graveto, um bicho-pau. Vestia uma túnica branca que ia até os joelhos ossudos. Segurava um cajado de madeira, que usava para palmilhar o caminho escuro, iluminado apenas pelas estrelas e pelo brilho de seus olhos, naquela noite de lua nova.

Uma Preta Velha! 

Yutl engasgou de emoção. Amava desde sempre qualquer Preto Velho ou Caboclo e havia muito tempo mesmo não encontrava nenhum (cada vez mais raros, são espécie em extinção). Só restava saber se seria aceito. Algumas pessoas eram resistentes a companhias estranhas. Aguardou, ansioso, a mulher entrar.

Ela parou, viu o tapete dobrado e resmungou ‘hum’. Chegou à cozinha, e, ao pegar uma desbeiçada caneca de folha de flandres, percebeu as ervas arrumadas na pia. Fez hum-hum”, e voltou pra sala. Sentou, estendeu as pernas, alcançou a  bolsa de tabaco, o pito e... surpresa, o cachimbo já estava pronto para ser pitado. Fez “hum-hum-hum” e sorriu, um sorriso branco de dentes perfeitos, gentil e humilde. Ficou ali a soltar baforadas em formatos de flores, estrelas, peixinhos...
Pitar um cachimbo
é um ritual comum
a todos os Pretos Velhos.

Yutl a tudo observava, escondido e atento. A Preta Velha levantou, pegou um pedaço, pedacinho, de bolo de fubá, deixou-o na janela e foi dormir. Yutl mal cabia em si. A dona da casa não só percebera sua presença como também o convidava a ficar! Era muita felicidade. Um lar! Um lar para chamar de seu, um lar para morar, um humano para cuidar. Era, realmente, o Paraíso.

Agora que a casa também era sua, colheu um cogumelo e enterrou-o debaixo da jurema. Na próxima Lua Nova estaria pronto para ser transformado em cerveja. Feito isso, ajeitou-se e dormiu numa teia de aranha cuja proprietária já não pertencia a esse mundo. 

Nunca ele fora tão feliz. A Preta Velha era uma curandeira querida na região e sua fama aumentara graças a Yutl, que a ajudava a plantar, colher, escolher e preparar as ervas e mandingas certas para cada caso. 

Aos poucos, Yutl passou a entrar nas casas do vilarejo próximo. Espantava os pernilongos que atacavam bebês, afugentava pesadelos, devolvia objetos perdidos, iluminava, com vagalumes, o caminho dos viajantes cansados, nas noites de lua tímida. 

Talvez essas e outras pequenas gentilezas tenham despertado memórias ancestrais nos habitantes, pois, assim, do nada, camponeses passaram a separar um copo de leite da primeira ordenha do dia; crianças enfeitavam as pedras da estrada com lacinhos, botões, flores, paus de canela; mulheres deixavam nos peitoris pequenos potes com mingau de banana. Faziam isso com naturalidade, sem se dar conta que seus antepassados costumavam agir da mesma maneira, considerando os Elementais como da família.

Quatro Luas Azuis apareceram no céu e, se os Elementais não envelhecem, seres humanos sim. Chegou, enfim, para a bondosa Preta Velha, o tempo de partir. Yutl não se entristeceu. Sabia que a vida era um eterno recomeço. A Curandeira cumprira sua Missão com honra e caridade; ia feliz. 

E nosso amigo? Ficaria na mesma casa até a primeira chuva de verão. Depois decidiria o que fazer. Poderia se desfazer na chuva e voltar à terra, de onde viera, ao barro do qual fora criado. Ou escolher um novo lar. 

Portanto, se você perceber que as crianças estão mais sorridentes; os bichos, mais brincalhões; que os objetos estão sempre mudando de lugar; que não tem mais mosquitos na casa... bem, que tal deixar um mimo aqui, uma guloseima ali, colocar uma planta na casa?

Pode ser que Yutl ou algum de seus primos esteja querendo morar com você, fazer-lhe pequenos mil favores, proteger sua família. Nunca se sabe.
Nosso amiguinho Yutl, Elemental da Terra

Agradecimentos mais que especiais para a minha Amiga Érica Pascoal, ilustradora talentosa, que gentilmente desenhou Yutl (e deu muito trabalho, pois ele não parava quieto!)



Fotos
manacá de cheiro Pinterest 50f967d1ebf65d6692b2d85531f58df6.jpg
cachimbo Pinterest 7e6f67b5683619d1c81b6bd679648b85.jpg




Comentários

Unknown disse…
Ohmmmm que história fofaaaaaaa!!!! Que honra meu humilde desenhozinho ilustrar sua história, Zo. Fofa, fofa, muito fofa!
Marcio disse…
Zoraya, assim você dificulta a vida de quem se dedica a fazer comentários cretinos abaixo de seus textos.
Como é que eu vou escrever alguma coisa escrota a partir de um texto fofinho?
Logo em uma hora de tanto conflito, você escreve algo tão harmonioso?
Isso não se faz!
ah, quanta doçura, que desenho mais lindo, que linda imagem se forma em nossa mente ao imaginar seres assim, que vivem para fazer o bem...

Eu acredito!

acredito em duendes, fadas, pretos velhos, caboclos, gente que faz bem, gente que deseja o bem para o os outros para o mundo...

eu acredito em gente que semeia e agradeço a vc, Zô, por semear aventuras em nossa imaginação e bênçãos em nossos corações!

Que venha o Yutl!
Clarisse Pacheco disse…
Começando o fim de semana com o pé direito, e o coração leve.
Anônimo disse…
Que gracinha de texto, em tempos tão conturbado, esse pequeno Yutl chega como uma bênção de alegria. Parabéns também para a ilustradora Erica pelo desenho maravilhoso.

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