SONHOZINHO >> Sergio Geia
Sei que é pessoal, muito pessoal, mas não tem
como escrever crônica sem ser pessoal. Clarice sofreu disso, tentou fugir, não se
interessava em contar coisas de sua vida. Desistiu de fugir quando alertada
pelo rei da crônica, o Rubem Braga, de que não tinha como escapar do pessoal se
quisesse escrever crônica.
Semana de turbulências, bateu insônia, calor
insuportável, até que numa noite de sexta para sábado, o sono veio, pesado,
dolorido. Acordei feliz da vida no sábado, desperto, nível da bateria nas
alturas.
Manhã comum, fui organizar fotos no computador. À
tarde, dei um cochilo. Foi quando acordei, atropelado de novo por um sono
pesado, que a coisa aconteceu. Naquele momento em que a cabeça ainda pesa, que você
tateia coisas, reconhece lugar, dia, hora, olhos se negam a abrir, você vai
chegando mansinho, nascendo na velocidade de um jegue, de repente, num estalo,
lembrei.
Sonhava e o sonho se apresentou a mim com uma
clareza tão incomum, absurda e surpreendente que meus olhos se abriram, agora,
na velocidade de um gnu, o bicho mais rápido do planeta. Lembrava detalhes,
diálogos, expressões, tudo veio até mim. Quase me levantei para anotar, achava
que num novo estalo tudo se perderia, apagão completo, e aí, babau coisas tão
doces.
O sonho.
Estava na rua Barão, na casa onde morou minha
bisavó Santa Ronconi. João tinha sido escalado para dormir com ela. Entramos e
lá encontrei a bisa assistindo ao Silvio Santos (ela adorava), com as pernas
esticadas sobre uma banqueta. Até aí, tudo bem, exceto que João e bisa nem se
conheceram e são de gerações separadas por um oceano de anos. De repente,
olhando pra mim, na sala da casa da bisa Santa Ronconi, minha vó Lourença, mãe
de meu pai. Detalhe: no sonho, a bisa estava vivinha da silva enquanto vó
Lourença tinha morrido. Assim, eu falava com o espírito ou seja lá o nome que
se dá a isso, da vó Lourença.
Minha primeira atitude foi acarinhá-la, passei a
mão sobre seus cabelinhos brancos (o que restava deles), sobre seu rosto em
formato de pera, seus olhos brilhavam e ela parecia muito feliz.
Você vai à missa?, me perguntou.
Vou, respondi de imediato.
Eu não sei se vou, ela comentou, afinal, a missa é
para vocês que estão aqui. Eu não estou mais aqui, mas talvez consiga ir sim.
E a senhora está bem, vó?, eu perguntei.
Sim, estou bem, ela me respondeu, sem entrar em
detalhes.
No sonho, depois disso, me despedia de João, dizendo
que estaria dormindo na casa da vó Ita, que qualquer coisa que ele precisasse
era só chamar. E hoje, depois desse sono pesadíssimo, acordei com vó Lourença
perto de mim.
Como todos os sonhos, sonho confuso e meio sem
sentido. Cronologicamente, a bisa morreu primeiro, depois Lourença, depois Ita.
No sonho, somente vó Lourença tinha morrido, enquanto vó Ita, mãe de minha mãe,
e sua mãe Santa Ronconi, a bisa, viviam. Doideira total.
Sim, não
aconteceu mais nada. Talvez você possa estar aí decepcionado; esperava grandes
revelações, imagens do além, algo forte, ou gestos marcantes, frases
sensacionais, ou dúbias, ou complexas. Um sonhozinho, você deve pensar.
Tem razão.
Talvez nem devesse estar aqui contando sobre ele.
Talvez o que importe aqui não tenha sido o sonho, mas a maneira como tudo
aconteceu, a forma como ele veio até mim, como se minha própria avó, querida
avó, vó de todos os alunos do Municipal, tivesse descido um pouquinho do céu
para ver o neto, contar algumas coisinhas bobas, perguntar se eu iria à missa
(faz tempo que não vou), bater um papo, permitir-se ser acarinhada.
Minha casa é sua, vó, eu disse antes de me
levantar, venha sempre que quiser, quem sabe bater um papo, se puder traga mais
gente, meu pai (o coração aperta, olhos encharcam), tio Ademar, tia Marília,
tia Dayse, tio José, tio Nilson, tia Cida, tia Teresa, tio Paulo, vô David, vó
Ita, vô Sansa, Armando, tio Cláudio, tia Cecília, Marco Antônio, Zé Ricardo...
P.S.: Da esquerda para a direita, tia Marília, vó Ita, vó Lourença, meu pai, minha mãe, tia Adélia
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