O PÃO QUE SE COME DORMIDO - 1a PARTE >> Zoraya Cesar
Tuninho tinha uma padaria, negócio honesto e sólido. Não que isso significasse grandes riquezas. Dava para viver com certo conforto – para os padrões mais que modestos do bairro onde morava com a mulher.
Não era boa nem má pessoa, rico ou pobre. Não era, exatamente, estúpido, tampouco primava pela inteligência. Um medíocre, em todos os sentidos.
Tão medíocre e previsível, que, quando sua esposa, D. Isabel, completou 50 anos, ele a trocou – não por duas, mas por uma de 25.
Wanusa era sobrinha de D. Isabel. Toda roliça e voluptuosa, as curvas nos lugares certos e os decotes na medida exata para despertar imaginações e desejos. Estivéssemos no séc. XX, diríamos que ela era brejeira e sestrosa. Viera passar uma temporada com a tia para estudar, aprender uma profissão e arranjar um casamento vantajoso. Quem não nasce rico tem que casar com o dinheiro, dizia (pois era pobre, não boba).
A esposa pressentiu o perigo, mas, para desgosto das amigas, nada fez para expulsar a desavergonhada e manter o casamento. “Agora que ele tá bem de vida. Depois de tanto sacrifício. Você já não tem idade pra procurar outro marido. É macumba! Você não pode sair assim, com uma mão na frente, outra atrás”... As amigas se desesperavam. Era muita injustiça. D. Isabel perdera a juventude aguentando as sovinices, chatices, cretinices do marido. Trabalhara duro, acordando de madrugada, fazendo contas e compras, atendendo no balcão, tudo. Tuninho só fazia o pão.
Embora cansada daquela vida monótona, do trabalho extenuante, do casamento sem graça, ela jamais cogitara em se separar. Tuninho nunca a levara para sair, nunca a elogiara, nem permitira gastos com beleza. Não tiveram os filhos que D. Isabel tanto queria. Ela não sabia o que era tirar férias – sempre quisera ir ao Nordeste; o mais perto que chegara fora assistindo novelas. O marido dizia que era melhor trabalhar árduo para aproveitarem mais tarde. E agora, que o “mais tarde” havia chegado...
O pão nosso de cada dia de D. Isabel já estava solado há bastante tempo. |
D. Isabel estava exaurida, alquebrada, decepcionada. Então, vociferavam as amigas, agora que você pode aproveitar a vida e o dinheiro, vai deixar tudo de mão beijada praquele desgramado? Vai sair assim? Humilhada, rejeitada, sem chiar, espernear, ou, ao menos, se vingar? Mata a lambisgoia! D. Isabel chorava, sacudindo a cabeça. Não podia fazer nada contra a moça, era família! E, quanto ao resto, que se desse tempo ao tempo.
Agora, deixemos D. Isabel cuidando de suas feridas, quieta em seu canto, como é de seu feitio discreto, e voltemos ao nosso anti-herói.
Tuninho sentia-se no sétimo céu, se me perdoam o chavão. Olhou as contas, viu que dava para fazer algumas extravagâncias; olhou para a mulher que o ajudara a chegar nessa confortável posição, viu que estava envelhecida e feiosa. Olhou para si mesmo, viu um homem que merecia ser recompensado por ter trabalhado como um mouro por toda a vida.
Tinha dinheiro, saúde e oportunidade - pois era evidente que a sobrinha de D. Isabel estava caidinha por ele. Rolava beijo, amasso, meu amor pra cá, meu amor pra lá, “a mão naquilo e aquilo na mão”... e só. Wanusa recusava-se a se entregar biblicamente enquanto a tia estivesse em casa. “Falta de respeito”, dizia.
Mesmo velho, barrigudo, enrugado e ridículo - colava com gel os compridos fios de cabelo que lhe restavam na careca manchada de marcas de senilidade – Tuninho acreditava no amor de Wanusa. Abrasado pelas chamas do tesão e da vaidade, decidiu que a esposa já dera o que tinha de dar. E mandou-a morar em outro bairro, ainda mais modesto, com uma pensão um pouco menos que digna. D. Isabel foi chorando, mas sem reclamar seus direitos.
Estando o caminho livre, as carícias se aprofundaram: agora, colocavam também a boca naquilo e aquilo na boca, mas, transar, mesmo, comme il faut, garantiu Wanusa, só depois de casada (afinal, pensava ela, “pão comido, pão esquecido”). Vivendo em constante estado de ansiedade e enlouquecido de paixão, Tuninho começou a pressionar a esposa pelo divórcio.
D. Isabel trabalhara duro pelo pão de todo dia. Mas o bocado nem sempre é para quem o faz, mas para quem o come. |
Enquanto D. Isabel não assinava o divórcio, Tuninho desfilava com Wanusa pra cima e pra baixo, orgulhoso em mostrar que, apesar da idade, ainda era macho, capaz de se garantir com um mulherão daqueles na cama (mesmo que não totalmente), mesa e banho.
Nem tudo, claro, eram flores. Tuninho tinha ciúmes. Ciúmes viscosos e grudentos que não o deixavam aproveitar seu grande momento. Se, por um lado, envaidecia-se em mostrar seu troféu de minissaia pela vizinhança, por outro, apavorava-se de que algum rival mais moço e bonito lhe passasse a perna. E quanto mais ciúmes tinha, mais raiva nutria por D. Isabel, aquela megera dos infernos que, por mesquinharia e inveja, recusava-se a dar-lhe o divórcio.
Tuninho acreditava firmemente que fora justo com D. Isabel. Acreditava, também, que, uma vez casada, Wanusa não só lhe entregaria o corpo todo, como não o largaria mais. Talvez até tivessem filhos, aqueles mesmos que ele não quisera ter com D. Isabel.
Ciúme, sabemos, é um ser que, convenientemente alimentado, cria volição própria. Sua pressa em separar-se de D. Isabel e casar com Wanusa transformou-se em premência.
Forno aberto antes da hora não assa pão. E o apressado come cru, certo?
Continua dia 20 de abril.
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Comentários
A Zoraya diz que está tentando se controlar, mas eu creio que é só um artifício para prender a atenção do leitor.
Bom artifício, por sinal: comigo, está funcionando.
Espero que este comentário não desvie a intenção da autora.