DEVAGAR COM A DOR >> Carla Dias >>
A lembrança interrompe a trilha sonora interna do momento. Porém, a música tema sendo tocada – ininterruptamente e há horas – no jukebox da minha cachola é conversa para outro dia.
Nesse momento, tudo silencia, porque há lembrança que só se manifesta se todos os sons se calarem em sua homenagem. E esse filme toma minha memória, assim, mudo, porque o suspense é necessário.
Mas o que fazer com uma lembrança que não vem inteira? Cadê o som que sei que ela tinha? Havia diálogos ali, não apenas movimentos. Havia verdades nela, que sinto que eu apreciava escutar: ritmo e emoção. Que pena que não as decorei para declamar mais tarde, feito poema raptado de autor desconhecido.
Resta-me, então, feito ser humano escolado em versões, criar um diálogo novo para uma velha lembrança. Sabemos quantas mudanças as lembranças sofrem com o passar do tempo. Algumas delas se tornam outras. A verdade se perde, dando lugar às interpretações que se guiam pelo humor do seu interlocutor, de acordo com o que ele sente naquele momento.
Naquela lembrança eu estava feliz. À frente, o mar. Era tanta vista, que meu olhar vagueava sem pressa. Pés descalços na areia, uma das raras sintonias entre mim e o sol. Aquela música que tocava no jukebox da minha cachola, antes de tudo se calar, ela até que combinaria bem com o cenário.
Sou eu há mais de duas décadas, com muitas histórias para viver, mudanças para sofrer. E aquela beleza toda...
Praia, para mim, tem de ser para assistir pôr do sol. Eu tenho medo de mar, de água a perder de vista, viva. Tenho medo que enfrento botando os pés no mar, morrendo de amores pela água. É um encantamento misturado a um contínuo arrepio que indica cuidado.
É lembrança de quando fui tocar no litoral norte de São Paulo. Eu tinha comprado a bateria que desejava tanto. Foi estreia e encantamento. E ainda tinha aquela vista.
Aos desavisados, meu sonho de consumo é uma vista na qual eu possa me perder. Apenas um lugar de onde o olhar possa partir, para transitar sem esbarrar na janela do vizinho. E aquilo, era tanto céu e mar que eu juro que perdi o fôlego.
Inventei umas histórias para meus companheiros de vista dizerem. Dominei a lembrança como se a tivesse criado. Não importavam mais os diálogos, mas só até aquele momento. Nele nunca consegui mexer. Dele me esqueço para ruminá-lo na crueza da sua verdade, quando a lembrança volta ao original.
Um dos meus companheiros de jornada, uma figura muito lógica e direta, respondeu a uma pergunta que fiz ao universo. Perguntei a ele, ao universo, tomada pelo arrebatamento da visão e dos atrevimentos inspirados pela combinação areia, mar, sol e céu; inspirada pelos desmandos da poesia que abraça reflexões, por que diabo as pessoas eram capazes de cometer tantas tragédias num mundo de tantas belezas. E essa pessoa entrou no meu espaço delirante para responder, de forma certeira e intrometida, que é do ser humano doer e causar dor, e que nem todos param para observar. Eles escolhem neutralizar o perigo, mesmo que ele ainda não esteja ali. Antever a desgraça, prever o desencantamento, ameaçar a dor.
Quando menina, depois de escutar pela primeira vez “devagar com o andor, que o santo é de barro”, passei as procissões seguintes – e foram muitas – a temer pelos seres humanos, que esse negócio de derrubar santo não me parecia boa coisa. Os santos poderiam até se espatifar no chão, mas o preço para o espírito do ser humano que os derrubasse, era sobre ele que eu pensava.
Depois, aprendi que a expressão era mais ampla.
Hoje, na lembrança concluída, pós deslumbramento geográfico, permito-me reformular: devagar com a dor e com o desamparo. Aquele dia, um dos meus raros na praia, não consegui discordar do meu companheiro de jornada. Hoje, muitos tombos depois, tantas mudanças infligidas e amores cultivados, eu posso me dizer mais corajosa. A lembrança vem e vai embora, mas sem me atormentar como antes. Fico com a versão-deslumbramento dela. Fico com a parte em que o ser humano observa aquela beleza como um meio para aliviar os conflitos internos, abrandar os dissabores, inspirar-se para alcançar soluções. É beleza que se aprofunda no que temos de melhor, modificando o pior de nós para algo mais justo. Ela molda nossa vida, feito o barro do qual é feito os santos.
Lembrança passa. Ligo meu jukebox interior e a música continua. Há dias em que a trilha sonora é que nos escolhe e nos manda de volta para casa.
Imagem © Hermann Seeger
carladias.com
Comentários
Abraços,
Enio
Denise, minha cara, ouse sempre que ousar vale a pena. Nesse caso, sua ousadia me deixou muito feliz. Obrigada. Beijo.
Beijos de oleiro.
Albir, sempre às ordens para ajudar na compreensão de coisas meio malucas. Beijo.