O PADRE E O GEIA >> Sergio Geia
Somos dois operários da mastigação; nem bem
amanhece o dia, lá estamos batendo o ponto. Sem uma ajudante, ele toma o café e
faz as refeições na rua; eu, sozinho, também.
Conheço Eugênio de longa data, desde os bons
tempos em que ele, um magro seminarista, frequentava os Castilhos. Eu, um magro
coroinha, também frequentava os Castilhos; e a igreja. Nunca tivemos uma
amizade na acepção usual do termo, apenas o conhecia, mesmo porque, depois, Eugênio
sumiu — seminarista é assim; costuma andar pra lá e pra cá, a conhecer
realidades díspares em comunidades centrais e periféricas — e virou padre; eu
fiquei, cresci, larguei a batina (de coroinha), virei coordenador de pastoral
da juventude, depois cresci mais, casei, sumi.
Agora, Eugênio é pároco do Santuário, e eu não
sou nada; ou, talvez, seja apenas um simples sujeito que gosta de escrever.
Pois topo com o Eugênio quase todos os dias na padaria. Outro dia escrevi sobre
ele e um carteiro (ele nem sabe); hoje escrevo sobre ele e o Geia; porque hoje,
somente hoje, depois de tantos encontros, de tantas idas e vindas, depois de
tantos bons-dias e jubilosas degustações, paramos um pouco pra conversar.
Disse-me que um tio meu é vizinho seu; que outro
dia foi visitá-lo em sua residência; que conhece bem os Geias, o Marcos, o
Milton; disse-lhe que o conhecia da casa dos Castilhos; e da igreja; que fui coroinha,
coordenador de grupo de jovem, cantador dominical da missa das seis e meia; que
quando o conheci, ele era um fino seminarista (disse apenas que era um
seminarista, para lhe ser bastante honesto).
Conversamos muito sobre o saudoso Monsenhor
Teófilo; disse-lhe que Teófilo havia morrido muito cedo; que prezei muito a sua
amizade; que sinto falta. Eugênio disse que quando Teófilo assumiu a paróquia
da Santa Teresinha, vindo de São Bento do Sapucaí, ele já apresentava problemas
no coração. Não sabia; minha lembrança é vaga. Tenho apenas comigo a imagem
turva de alguém dizendo que ele passara mal numa consulta médica.
Falou-me sobre o Seminário Diocesano Santo
Antônio, lugar que o Geia tanto frequentou, onde tanto jogou bola, tanto namorou
em animadas festas juninas, tanto bebeu e tão pouco rezou. Hoje o seminário não
está mais na Granadeiro Guimarães; mudou-se. Disse-me que parte foi para o Alto
do Cristo e parte, para a Casa do Menor; disse-me que a manutenção da casa, que
era muito grande, estava salgada; que reduziu enormemente o número de
seminaristas; que o senhor bispo achou por bem alugar o prédio para duas
escolas de origem diocesana, e transferir o seminário para outras bandas.
Naquele tempo eram muitos os seminaristas, tanto
que havia o seminário maior e o seminário menor; eram trinta, quarenta homens
vocacionados. Foram fraternas amizades, boas companhias de bar, muitos recebi
em casa para almoçar. Um tanto abraçou a vocação, guiados pelo Senhor e com fé;
outro tanto preferiu abraçar coisas mais mundanas, sensuais, mas não por isso
menos dignas ou distantes dos caminhos do Senhor.
Confesso que o Geia certa vez pensou em entrar
para o seminário. Foi um pensamento vago, uma ilusão passageira. Mas a vida no
seminário parecia atraente; relevem, porque o Geia, ao tempo daquele
pensamento, era uma criança inocente, que não sabia nada da vida. Lembro-me que
quase foi a um encontro vocacional no seminário; era uma espécie de apresentação
das coisas aos candidatos. Estava tudo certo para ir, porém, não foi, e a dita
vocação, a dita vontade de entrar para o seminário, se desmanchou, como um
pudim malfeito.
Conversamos mais alguma coisa, falamos de
política, da situação preocupante do país, dos amigos Castilhos; logo ele
terminou o café, se despediu e foi. Eu fiquei, fiquei mais um pouco bebericando
o expresso, imaginando que aquela conversa boa poderia ser o princípio de uma
sincera amizade.
Ilustração: obra do acervo do artista plástico frei
Miguel Lucas Peña
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