ESPERTO TODA VIDA >> Zoraya Cesar
Quando D. Lindinha morreu, a família entrou em desespero. À tristeza pela perda da matriarca, juntou-se o medo de que Seu Nestor morresse logo em seguida. Foram mais de 40 anos de casados e, nos últimos tempos, Seu Nestor dependia de D. Lindinha para tudo.
Sempre trêmulo, apesar de não ter Parkinson; sempre com palpitações no coração, apesar de não ter problemas cardíacos, qualquer esforço parecia lhe custar anos de vida. Para poupá-lo, D. Lindinha amarrava-lhe os sapatos, passava manteiga no pão, enxugava-o após o banho. Cozinhava também, pois seu Nestor só aceitava comida feita por ela e, de preferência, comida fresca. "Lindinha, minha filha, preciso disso, estou com vontade daquilo", e ela se desdobrava para atender às necessidades do marido, abnegada e amorosa. “Não vivo sem minha Lindinha” era o bordão de Seu Nestor.
Ela dizia, toda orgulhosa, que Seu Nestor poderia arranjar uma lambisgóia qualquer, 20, 30 anos mais nova, mas não, fazia questão que ela, ela mesma, Lindinalva, cuidasse de tudo. Ele, por sua vez, dizia amá-la demais e agora, no fim da vida, não a deixaria um minuto sequer.
Não foram poucos os que choraram ao ouvir o discurso de um ou de outro.
Tal dedicação ao “meu Nestorzinho” exigia, claro, alguns sacrifícios. Veleidades como fazer as unhas, pintar o cabelo, sair com as amigas, jamais. Ela fazia questão de esclarecer que tinha vaidades sim, mas se desapegava delas em nome do amor. Viajar, nem pensar, seria muito cansativo para ele. Seu Nestor até que insistia para ela “dar uma voltinha”, mas sempre que estava para sair, já toda arrumada, ele parecia tão frágil, tão trêmulo, que ela desistia e voltava da porta. Até a uma festa de aniversário do neto ela deixou de ir, porque ele preferiu ficar em casa.
(Essa união despertava inveja e admiração em todos, inclusive em mim, que sempre criticara o comportamento um tanto rascante de minha mãe, pessoa muito amorosa, mas que jamais, em tempo algum, pegara sequer um copo de água para meu pai, estivesse ele doente, cansado ou ocupado. A vontade de minha mãe era lei. Dinheiro? Todo, todinho na mão dela. O que sobrava para ele era contado).
Mas, por uma daquelas velhacarias do Destino, D. Lindinha morreu, como vocês já sabem, e morreu antes de Seu Nestor, contrariando todas as expectativas (aprendamos de uma vez: qualquer previsão é inútil). E, como vocês também já sabem, a família se preparou para a morte próxima do patriarca.
Oito meses depois do enterro, voltei à cidade para visitar meus pais, vizinhos desde sempre do casal, cujas casas dividiam o muro coberto de buganvílias. Subi ao terraço para ver o que teria acontecido ao terreno de Seu Nestor e D. Lindinha, tão abandonado nos últimos anos, que mais parecia baldio, um espólio de guerra.
Tive um choque. Aquilo se transformara em um exemplar de Casa e Jardim, pronto para servir de cenário para filmes de gente rica. Muito rica.
Talvez o Eike Batista tenha comprado a casa, pensei, mesmerizada pela enorme piscina, que, até a morte de D. Lindinha, nunca existira.
Então ele apareceu. Musculoso, ereto, pele bronzeada. Seu Nestor, 20 anos mais moço, e que moço! Deu um mergulho olímpico e nadou como um esportista. Um homem que nem amarrava os próprios sapatos! Estão pasmos? Tem mais: pouco depois, surgiu uma mulher loura, meia idade e cheinha, mas com tudo no lugar, bonita mesmo, de biquíni, pulseiras douradas, chapéu de abas largas e toda sorridente. Deitou-se languidamente na chaise à beira da piscina. Seu Nestor foi ao encontro dela e trocaram um longo e lascivo beijo.
Quase caio do terraço, em choque.
Mais tarde, minha mãe explicou-me a cena insólita. Já no enterro da mulher, Seu Nestor conhecera Janete, assistente do tabelião da cidade, e passaram a se ver constantemente, por conta do inventário. O corpo da falecida nem esfriara e o inconsolável viúvo, aquele que dizia não viver sem sua Lindinha, entrou na academia, reformou a casa e, três meses depois de enviuvar, chamou Janete para morar com ele.
A nova consorte veste-se muito bem, vai ao salão de beleza toda semana e não mexe uma palha dentro de casa, pois as recém-contratadas cozinheira e arrumadeira cuidam de tudo. O casal sai quase todas as noites. E Seu Nestor, que nunca levara D. Lindinha nem à cidade ao lado, vai viajar com Janete para os Estados Unidos. Os filhos se afastaram, revoltados, mas, minha mãe, sempre prática, garantiu que o dinheiro aproxima as pessoas, e logo logo aquela situação não tardaria a mudar.
E se deu ao luxo de me alfinetar:
— Tá vendo por que não dou mole pro seu pai? Depois eu morro e todo o dinheiro que ele não gastou comigo vai parar nas mãos de uma loura esperta.
Nunca mais critiquei minha mãe. Não mesmo.
Comentários
Beijos.
Eu penso que a primeira é mais verossímia e vc?
não deixe de nos contar se, em sua próxima visita, descobrir que Janete se tornou a senhora de um servo paciente, dedicado, submisso e disposto a entregar sangue, suor e dinheiro, chamado Nestorzinho.
tô com o Vicente, a morte muda o panorama das coisas... boa sorte para o novo Nestor e que a aproximação dos filhos não seja somente por dinheiro...
Paulo Cardoso